Biblioterapia: como é que os livros curam?

A ideia – de que os livros podem ajudar a ultrapassar os mais diversos problemas – é simples e vem das civilizações clássicas. César Ferreira e Sandra Barão Nobre são biblioterapeutas.

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Paulo Pimenta

Emília quer dar novo rumo à sua vida — como tantas outras pessoas, decidiu que quer ocupar-se com aquilo que lhe dá mais prazer, o restauro. Além disso foi-lhe diagnosticada uma doença auto--imune, mas o que agora está a ajudá-la são os livros. Mais concretamente, as sessões de biblioterapia.

Nos últimos meses, César Ferreira, o biblioterapeuta com espaço de atendimento na Lx Factory em Lisboa, já recebeu desde crianças com dificuldades de leitura e dislexia a pessoas a lidar com o luto. No Porto, Sandra Barão Nobre lançou o próprio “consultório” há um ano. A actividade, que hoje já se estabeleceu em países como o Reino Unido e começa a ganhar adeptos em Portugal, é bem menos esotérica do que possa parecer. Na acepção mais simples, define-se — segundo a Infopédia — como o “tratamento de doenças através da leitura de livros”. Na verdade, provavelmente já todos o fizemos de uma forma ou de outra, ao recomendar um livro a alguém, aponta Sandra Barão Nobre.

Aliás, o aproveitamento da leitura para fins terapêuticos vem do tempo dos gregos e dos romanos. Ao longo da história, há relatos de médicos que utilizavam passagens da Bíblia para ajudar à cura e, ao longo do século XX, começaram a surgir os primeiros estudos nesta área. Um dos grandes impulsionadores da prática foi o filósofo Alain de Botton, que em conjunto com outros colegas, fundou, em 2008, The School of Life — uma organização dedicada à “inteligência emocional”, que oferece aulas e diferentes tipos de terapia. Num dos vídeos do YouTube, que soma mais de 2,6 milhões de seguidores, é explicado em menos de cinco minutos por que é que a literatura é importante para o ser humano: “Dá-nos um leque de emoções e eventos que levaríamos anos, décadas, milénios, para sentir directamente.” Ou seja, é um “simulador de realidade” que nos permite de forma segura sentir na pele, por exemplo, como é passar por um divórcio, matar alguém e ter remorso e abandonar o emprego para fazer uma viagem à volta do mundo.

É no The Therapist, recentemente aberto no Lx Factory, que César Ferreira pratica a biblioterapia. O espaço alberga outros tipos de terapias alternativas como a medicina chinesa e a aiurvédica. “Neste caso estamos a trabalhar o propósito da vida”, explica ao PÚBLICO, no início da consulta com Emília. Na primeira sessão, a cliente vinha à procura de algo sem saber ao certo o quê. “Tenho uma doença que, pela lógica, vai limitar-me o meu futuro. E qualquer pessoa procura o futuro”, desabafa.

O Alquimista, de Paulo Coelho, e Mude a Sua Vida em 7 Dias, de Paul McKenna são alguns dos livros que já lhe foram recomendados. Hoje tem toda a certeza que quer mudar de profissão e fazer do hobby do restauro a sua actividade principal, mas aquilo que ainda a está a travar é a “questão financeira”. Ao longo da sessão, César vai explorando vários aspectos, colocando perguntas como “Achas que, se tivesses essa parte [financeira] segura, avançavas imediatamente?” e “Quanto tempo podes dedicar ao restauro por dia?”. Actua quase como um profissional de coaching.

Pessoas que lêem muito

Não há propriamente um curso que consiga por si só formar um biblioterapeuta. “Para se ser um bom biblioterapeuta tem de se ter, acima de tudo, competência ao nível da análise humana”, explica César Ferreira, licenciado em Filosofia e mestre em Ciências da Informação e da Comunicação. Depois, evidentemente, há que ler muito e ter interesse em literatura, continua. Antes de ter mudado de vida — o que agora está a ajudar Emília a fazer — era bibliotecário. Também já fez várias formações na área do comportamento humano e defende que “nunca iria ser um bom biblioterapeuta”, se se focasse só numa área. “A formação mais valiosa que tenho é aquilo que sempre fui durante a minha vida.”

Já Sandra Barão Nobre tornou-se bibioterapeuta por conta própria, em Maio de 2016. Antes de abandonar definitivamente o emprego de “livreira online” na Wook, da Porto Editora, fez as malas e viajou durante seis meses, por 14 países — e deu início a um projecto paralelo, que resultou no livro Volta ao Mundo com os Leitores, um livro que actualmente está nos tops das livrarias. Quando regressou a Portugal, percebeu que “não conseguia continuar a trabalhar como antes”. Então, tirou o certificado de coaching practitioner — a sua educação formal é em Relações Internacionais — e fez um curso de biblioterapia para a infância e juventude na Universidade do Porto. Os biblioterapeutas devem ser “pessoas empáticas que leiam muito”, defende.

A biblioterapeuta diz que, regra geral, “as pessoas chegam com assuntos muito concretos” para resolver e, em grande parte dos casos, estão ligados aos relacionamentos. Na primeira sessão, procura “conhecer a pessoa o melhor possível”: o que a levou a procurar a biblioterapia, quais são os seus objectivos, o que é que acha que a biblioterapia pode fazer naquele momento e quais os hábitos de leitura. A partir daí, prepara um relatório fundamentado com cerca de dez livros. Nas sessões seguintes, à medida que vão avançando na lista, a conversa gira à volta da leitura e do que esta suscitou. Em média, diz, cada pessoa demora entre duas a três sessões a atingir os seus objectivos.

Num dos casos mais peculiares, Sandra recebeu uma cliente que precisava de ajuda para desenvolver novos interesses literários. Já tinha lido muitos livros, inclusive de diferentes géneros, mas estava saturada e não conseguia perceber porquê. No final, a biblioterapeuta recomendou que explorasse literatura além das fronteiras da Europa e América.

Sandra Barão Nobre prefere recomendar livros de ficção. “O trabalho interior que é feito é muito mais intenso e profundo quando se lê um bom livro de ficção. Acredito sobretudo no poder transformador da ficção pelo papel da metáfora”, explica. Dentro da não-ficção, recomenda por vezes livros de desenvolvimento pessoal, mas evita a auto-ajuda. “Não tenho preconceito nenhum [em relação à auto-ajuda], mas é muito óbvia. Isso qualquer leitor, quando acha que precisa de ajuda, vai a uma livraria procurar.” César Ferreira concorda: “A ideia é a pessoa viver a história, mas que, no final, não acabe ali.” Um dos processos importantes da biblioterapia, continua, “é a pessoa passar os seus desafios para a personagem e conseguir perceber como a personagem os resolve”. 

Durante as consultas, é preciso saber orientar os clientes. O biblioterapeuta diz que é importante ter confiança no caminho: “É uma das coisas que procuram em nós.” Além do mais, continua, “a partir do momento em que se faz um bom diagnóstico, tem-se o caminho muito facilitado”. Assim foi durante a tarde de sexta-feira. No final da consulta Emília já falava noutro tom: “Se calhar é uma questão emocional e eu estava a desculpar-me com a questão financeira. Durante a infância [a segurança financeira] foi algo que sempre me foi transmitido.”

Emília saiu do consultório com mais dois livros para ler: O Peregrino, de Luís Ferreira, e A Única Coisa, de Jay Papasan e Gary Keller. O primeiro “é um livro de acção”, sobre o Caminho de Santiago — que Emília sonha percorrer até à Galiza — e o segundo deverá ajudá-la a concentrar-se no restauro, tomando os passos necessários para que se torne na sua actividade principal. Neste caso concreto, o terapeuta recomendou que desse especial atenção a um capítulo de perguntas. 

Vários tipos de consulta

Além das sessões individuais de acompanhamento de 90 minutos (60 euros), César recebe grupos — nomeadamente famílias, cujos filhos estão a ter alguma dificuldade com a leitura — e faz sessões de leitura em voz alta com massagem. Também na Lx Factory lecciona aulas de speed reading (leitura rápida). O espaço lisboeta vai receber em breve um segundo biblioterapeuta, revela Joana Teixeira, dona do The Therapist. Este vai complementar a área com uma componente de cineterapia, que envolve filmes e séries. Para Outubro, está previsto um workshop de biblioterapia.

Sandra Barão Nobre está a desenvolver a biblioperapia corporativa. A ideia — que já experimentou durante algum tempo numa start up — é “trabalhar com pequenos grupos, colocando toda a gente focada numa determinada obra ou conjunto de obras, em prol de um objectivo comum”.

Na biblioterapia clínica trabalha em conjunto com médicos. No Centro Hospitalar do Porto, onde é voluntária, vai uma vez por semana ler a uma unidade do Hospital de Santo António. “Aí lido com uma equipa que acredita profundamente nos benefícios da leitura em voz alta às pessoas que estão internadas”, conta. Por vezes, chega a coordenar esforços com os profissionais, para que lhe dêem informação sobre o perfil dos doentes, faixa etária e hábitos de leitura — assim consegue fazer escolhas mais personalizadas.

A biblioterapia não substitui — nem o pretende fazer — outros tipos de terapia, como a psicologia ou a psiquiatria. Sandra Barão Nobre diz que por vezes recebe pessoas que estão a ter um tipo de acompanhamento médico e que a procuram, de forma complementar. Apesar de nunca ter acontecido, garante que está atenta a possíveis sinais que sugiram que alguém tenha necessidade de acompanhamento médico especializado.

Sandra prefere não chamar à biblioterapia ciência, pois “a ciência implica que os resultados da metodologia aplicada sejam sempre os mesmos”. Ora, “um livro será sempre diferente nas mãos de cada leitor”.

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