Por que é que repetimos sempre os mesmos erros?
Enquanto as fitas da polícia a dizer do not cross rodearem o cadáver da governação Sócrates, Costa pode dormir mais descansado.
Mistérios portugueses: por que é que estivemos à beira da falência três vezes em menos de quatro décadas? Por que é que não conseguimos corrigir os nossos problemas estruturais? Por que é que é quase impossível tomar medidas difíceis sem ser por imposição do exterior (como fez Passos Coelho) ou por dissimulação interior (como está a fazer António Costa com a austeridade)? Por que é que estamos sempre a repetir os mesmos erros? A resposta a estas perguntas é simples: porque há uma recusa do diagnóstico. Nós não concordamos sobre aquilo que nos aconteceu, nem acerca das razões porque aconteceu.
E é neste ponto que regressamos ao tema dos meus textos anteriores, que estão relacionados com os nossos traços culturais e com a fragilidade de uma política da memória. Tanto José Sócrates como António Costa são muito pós-modernos — os factos são menos importantes do que as narrativas. Não juntei os dois numa só frase para os fazer equivaler, atenção. Já o disse muitas vezes, mas vale sempre a pena repetir, que são — graças a Deus — personalidades distintas. Comungam, contudo, de uma mesma escola de hábil manipulação da memória, e de formas engenhosas de distorcerem a realidade. Neste aspecto, Passos Coelho só pode ser condenado pelo contrário disso: uma admissão quase masoquista dos nossos erros, dos nossos problemas estruturais e da necessidade de os resolver custe o que custar (o famoso “ir além da troika”).
O meu ponto aqui é sobre esta “luta das narrativas”, porque o presente está a ser justificado através de estratégias hábeis que camuflam o passado. Por exemplo, eu sempre elogiei António Costa pelo respeito que tem demonstrado em relação ao trabalho da justiça na Operação Marquês. Só que esse respeito também lhe dá muito jeito: ao empurrar o caso Sócrates para o estrito âmbito judicial, Costa evita pronunciar-se sobre ele politicamente. Dupla vantagem: estando calado não pode no futuro vir a ser confrontado com as suas palavras, e no presente evita que o PS tenha de assumir as suas enormes responsabilidades durante o período em que José Sócrates foi primeiro-ministro. Até porque tanto António Costa, como muitos dos seus próximos (não só ministros e deputados, mas boa parte da sua entourage), vêm de lá e estiveram com ele. Com esta atitude, o primeiro-ministro ganha tempo, que é a sua grande especialidade, e continua a exercer o seu cargo com a cena do crime devidamente contida. Enquanto as fitas da polícia a dizer “do not cross” rodearem o cadáver da governação Sócrates, Costa pode dormir mais descansado.
Mas se ele pode, nós não devíamos. Regresso ao meu texto de há uma semana: a confusão que tem sido promovida entre responsabilidade política e responsabilidade criminal é uma estratégia que exime os políticos de assumir um passado tenebroso. E que promove a triste ladainha do “só me pronuncio depois do tribunal”; “todos são presumíveis inocentes”; “há que aguardar para tirar conclusões”. Tudo isto são artimanhas para não falar agora do que é inconveniente. E, assim sendo, não admira que a justiça invada o território político, seja através das fugas ao segredo de justiça, seja através da criminalização de um qualquer recebimento indevido de vantagem. O espaço que é desertado pela responsabilidade política é ocupado pela responsabilidade criminal. E todos os afluentes desaguam no mesmo rio: o da profunda incapacidade em assumir o que fazemos e em reflectir sobre aquilo que nos acontece.