Era uma aula de separação de poderes para o PS, sff
Sobrevaloriza a memória histórica das suas origens, mas tudo aquilo que aconteceu desde a segunda metade da década de 90 até aos dias de hoje parece não ter importância alguma.
Uma das coisas mais irritantes em Portugal é esta: os militantes do Partido Socialista, desde os tempos fundadores de Mário Soares, estão efectivamente convencidos de que são a fina-flor do regime e o depósito moral da democracia portuguesa. Nas suas cabeças, deve-se ao PS a liberdade e a democracia – e nesse sentido são a muralha contra os desvarios totalitários da extrema-esquerda –, e deve-se também ao PS a construção do Estado Social, a protecção dos mais fracos e a resistência à ganância capitalista – e nesse sentido são a muralha contra os desvarios neoliberais da direita. Devidamente muralhado, zona-tampão contra os alegados “excessos ideológicos” da esquerda e da direita, munido como nenhum outro partido de “razão” e de “coração”, o PS considera-se a si próprio a torre cimeira do regime português, o palácio dos justos, sem dúvida o lugar mais bem frequentado da política nacional desde 1974.
É graças a esta empáfia que o PS, os seus ministros, os seus deputados e os seus apoiantes se permitem falar invariavelmente de cima para baixo em relação a toda a gente que os rodeia – de adversários ideológicos a empresas privadas, passando pelos tribunais. Só na última semana, tivemos o primeiro-ministro a atacar no Parlamento uma empresa privada de telecomunicações, e o presidente da Assembleia da República, mais o líder parlamentar do PS, a criticar o Ministério Público por ter avançado com o processo às viagens pagas pela Galp. Ferro Rodrigues: “Porque é que passado um ano há agora esta situação de serem constituídos arguidos? É um mistério da justiça portuguesa.” Carlos César, a propósito da Caixa Geral de Depósitos: “A Assembleia da República fez o seu papel, o Ministério Público que faça o seu, em vez de andar entretido com questões de lana-caprina.”
Há aqui uma dupla inconsciência que é essencial denunciar, até porque não se trata de inconsciência alguma. A primeira diz respeito à separação de poderes. Já várias vezes elogiei António Costa pela forma como se afastou de José Sócrates, com o argumento simples, mas essencial, de que não se metia em temas de justiça. Infelizmente, nem Ferro Rodrigues, nem Carlos César, se sentem obrigados a seguir a mesma regra, o que é tanto mais incompreensível quanto o consulado de Joana Marques Vidal representa possivelmente a primeira vez, em mais de 40 anos de democracia, que o Ministério Público trabalha em segurança e em liberdade. Infelizmente, desde o processo Casa Pia que o PS tem uma atribuladíssima relação com a Justiça, que não há meio de ultrapassar.
E isso traz-nos à segunda inconsciência: a memória selectiva do PS. Eduardo Lourenço denunciou há muito o facto de em Portugal haver um excesso de memória mítica (milagre de Ourique, Descobrimentos, sebastianismo) para compensar a falta de memória de curto prazo e a nossa recusa em reflectir sobre as debilidades do presente e os erros de um passado muito próximo. O PS é hoje um exemplo descarado disso mesmo: sobrevaloriza a memória histórica das suas origens, mas tudo aquilo que aconteceu desde a segunda metade da década de 90 até aos dias de hoje parece não ter importância alguma. No Parlamento, António Costa foi ao ponto de acusar Passos Coelho pela privatização da PT. Ora, não se trata apenas de ser mentira – é uma forma profundamente insidiosa de sujar a memória colectiva e impedir o país de aprender com os seus piores erros. Mais sobre isto no sábado.