Donald Trump e a política ABO
Muitos interrogam-se se existe coerência no pensamento e na acção do actual Presidente dos Estados Unidos. Há pelo menos uma: fazer tudo ao contrário de Barack Obama.
Em 2001, George W. Bush tomou posse como Presidente dos Estados Unidos com uma orientação política que foi baptizada, com humor, de ABC — Anything But Clinton. Era preciso fazer tudo ao contrário do seu antecessor, Bill Clinton. A América retirou-se de vários compromissos internacionais anteriores, como o Protocolo de Quioto, o Tribunal Penal Internacional e o Test Ban Treaty; afastou-se do processo de paz do Médio Oriente; pôs fim às negociações com a Coreia do Norte sobre o seu programa nuclear, acabando assim com o Acordo de Genebra de 1994; abandonou o papel liderante na paz da Irlanda do Norte. Na base de tudo isto esteve uma inversão radical da forma de ver o mundo: a visão “kantiana” de Clinton, onde os Estados tinham interesse em cooperar e as repúblicas democráticas estabeleciam relações harmoniosas, deu lugar a um olhar “hobbesiano” que percepcionava a política internacional como uma relação entre Estados egoístas, envolvidos numa constante luta pelo poder, só podendo contar consigo mesmos e com as suas capacidades militares.
Em 2017, Donald Trump tornou-se o 45.º Presidente dos EUA com o objectivo assumido de reverter tudo o que Barack Obama fez, se possível numa extensão tal que os americanos se esquecessem que este último sequer existiu um dia. Em parte, tal resulta de uma profunda aversão que Trump tem por Obama e por tudo o que ele representa: o internacionalismo liberal, o globalismo, o multiculturalismo, uma visão progressista da política. Mas a questão é ainda mais de fundo. O actual chefe do executivo norte-americano é um revolucionário que considera que quase tudo o que foi feito antes dele foi estúpido e contra os interesses dos Estados Unidos e é preciso refazer quase do zero a política interna e externa do país.
Na política interna, a grande prioridade é revogar e substituir o Obamacare, “uma catástrofe”, nas palavras de Trump. Desde a primeira hora em funções, ele tem procurado acabar com este programa destinado a providenciar cuidados de saúde aos cerca de 40 milhões de americanos sem qualquer seguro, sendo que, ironicamente, só ainda não foi bem sucedido devido à oposição de alguns republicanos no Congresso. Outra área essencial é a da educação, com o Presidente a assumir-se como um fervoroso adepto da liberdade de escolha de escola, uma forma usada na América por aqueles que querem enfraquecer, ou mesmo destruir, a escola pública. Para além da reversão de programas como o “Common Core” e o “Race to the Top”, Donald Trump pretende ir muito mais além e acabar com o “No Child Left Behind” (criado por George W. Bush) e mesmo extinguir o Departamento de Educação. O mesmo acontece na política ambiental, com a Casa Branca a pôr em causa a existência de alterações climáticas provocadas pelo homem, a reverter muita da regulamentação aprovada na Administração Obama para limitar as energias poluentes, a acabar com o apoio ao desenvolvimento das chamadas energias alternativas e a aprovar a construção do Oleoduto Keystone XL. Finalmente, para referir apenas alguns exemplo importantes, o novo Presidente pretende voltar a desregular a actividade económica e financeira, diminuir os impostos para as empresas e para os mais ricos e mesmo reduzir os escalões do IRS para apenas quatro, o que vai no sentido oposto ao do aumento da progressividade.
Na política externa também há vários exemplos da “revolução” Trump. Ao pôr em causa a ordem internacional liberal criada pelos EUA no pós II Guerra Mundial. Ao acabar com uma perspectiva normativa, que colocava em igualdade na balança os interesses e os valores e privilegiava as relações com as democracias. Ao renegar as instituições multilaterais. Ao questionar as alianças permanentes. No caso específico das políticas levadas a cabo por Barack Obama, as reversões abrangeram quatro áreas essenciais: os grandes acordos internacionais, a relação transatlântica, a orientação estratégica para o Médio Oriente e a relação com a Rússia.
Quanto ao primeiro ponto, Donald Trump rasgou a Parceria Transpacífico (TPP), oferecendo à China a Ásia-Pacífico como área de influência económica para várias gerações; renegou a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), um acordo de comércio livre entre os EUA e a UE destinado a travar a transferência de riqueza e de poder para Oriente e a equilibrar a ascensão chinesa; retirou-se do Acordo de Paris, abdicando de liderar o mundo no campo das alterações climáticas e dando de bandeja essa liderança a Pequim, ou eventualmente mesmo a Berlim; ameaçou acabar com o Acordo Nuclear Iraniano, a que chamou “o pior que alguma vez vi”, chegando ao ponto de colocar em cima da mesa uma acção militar contra Teerão.
Relativamente à relação transatlântica, o Presidente norte-americano não só alterou a linha dura de Obama para com o "Brexit", chegando ao ponto de apoiar o “deplorável” Nigel Farage, como se colocou pela primeira vez em cerca de 70 anos contra o processo de integração europeia. Além disso, foi igualmente o primeiro a pôr em questão o artigo 5.º da NATO, ameaçando não o cumprir caso os europeus não paguem mais pela sua própria defesa. Acresce que resolveu classificar a Alemanha como uma das principais inimigas dos Estados Unidos, acabando com o romance Obama/Merkel.
No que concerne ao Médio Oriente, operou uma alteração profunda da estratégia da América para a região ao alinhar completamente com a Arábia Saudita e ao voltar a identificar o Irão como o Mal, enterrando a política de Obama de um afastamento relativamente aos sauditas e um desanuviamento das relações com os iranianos. Extravasando o âmbito regional, resolveu retomar a linha que identifica o Islão sunita árabe radical como uma ameaça existencial aos EUA, chegando ao ponto de insinuar que Barack Obama e Hillary Clinton eram maricas pois tinham medo de dizer as duas palavras juntas – Islão Radical.
Finalmente, quanto à Rússia, ao contrário do seu antecessor que adoptou uma linha dura na sequência da Guerra da Ucrânia e da anexação da Crimeia, Trump defende uma aproximação americano-russa, seja para ter Moscovo mais do lado de Washington do que de Pequim, seja para criar uma espécie de Santa Aliança Cristã (incluindo a Rússia Ortodoxa) contra o Islão, seja para combater o terrorismo.
Muitos interrogam-se se existe coerência no pensamento e na acção do actual Presidente dos Estados Unidos. Há pelo menos uma: fazer tudo ao contrário de Barack Obama. O conceito-chave de Donald Trump pode ser baptizado de ABO – Anything But Obama.