Os flagelantes e a escravatura
Houve da parte de muitos brancos um enorme empenhamento para pôr fim ao tráfico de escravos e à escravidão.
Na Europa medieval havia gente que ia de terra em terra, parava em frente das igrejas e chicoteava-se horas a fio. Eram os flagelantes e submetiam-se a essa tortura na esperança de que Deus lhes perdoasse os pecados próprios e os dos seus. Há, no Portugal de hoje em dia, atitudes que fazem lembrar as dos flagelantes. Penso em especial nos que julgam que vivem num país com um passado negro, carregado de pecados por redimir. Um desses pecados seria o que designam de forma imprecisa por “escravatura”. Os modernos flagelantes serão, muitos deles, pessoas bem-intencionadas, mas pouco ou mal informadas sobre o que foi a escravatura e sobre a história da relação de Portugal com o tráfico e a escravidão dos africanos.
Essa é uma história que me é familiar porque há 30 anos que a estudo, como investigador. Foi sobre esse assunto que fiz o meu doutoramento, que escrevi vários livros (dois dos quais publicados nos Estados Unidos) e dezenas de artigos. Escrevi também um romance (Do Outro Lado do Mar) que aqui menciono porque é na ficção que melhor se chega à riqueza e à complexidade das coisas e sinto que, nesse livro, transmiti plenamente o horror da escravatura negra e os sentimentos e motivações dos que nela se viram envolvidos, desde os chefes africanos no interior de Angola até aos senhores de escravos nas fazendas do Brasil.
Entendamo-nos bem: o tráfico negreiro e as relações de exploração extremas inerentes à escravidão colonial foram enormes abominações. Mas é preciso perceber igualmente bem que foram as nações ocidentais as primeiras que as estigmatizaram e proibiram. A partir de finais do século XVIII, e durante uns 100 anos, o Ocidente analisou e discutiu longamente a questão da escravatura e, ao fazê-lo, trouxe à luz do dia todos os seus dramas e horrores. Esse debate trouxe, também, a necessidade de emendar a mão e isso teve custos, inclusive humanos.
Pense-se nos marinheiros das esquadras que policiavam as costas de África para suprimirem o tráfico ilícito e que morriam de malária, febre-amarela ou nos confrontos com negreiros armados. Pense-se na guerra civil norte-americana que implicou a morte de mais de 600 mil pessoas. O filme Tempo de Glória, de Edward Zwick, conta a história verídica do primeiro regimento de negros formado no norte dos Estados Unidos durante essa guerra. Há uma passagem do filme em que um amargo e recalcitrante soldado (Denzel Washington) escarnece dos oficiais brancos que o comandam. Mas o graduado (Morgan Freeman), que antes da incorporação trabalhara como coveiro, repreende-o duramente: “Palerma! Estes brancos morrem por ti! Eu sei, porque sou eu que os enterro.”
Essa passagem está carregada de significados que os modernos flagelantes não conseguem ou não querem ver. Houve da parte de muitos brancos um enorme empenhamento para pôr fim ao tráfico de escravos e à escravidão. É verdade que após a escravidão vieram muitas vezes formas de trabalho coercivo. Isso aconteceu em todo o mundo, com gente de todas as origens e cores, mas foi evidentíssimo a partir de finais do século XIX, por alturas da chamada “Partilha de África”, quando a exploração da mão-de-obra negra retomou em força, já não sob o rótulo de escravidão, mas sim como trabalho regulamentado. Todavia, essa é outra história, passada noutro tempo, e misturar tudo, como algumas pessoas fazem, não ajuda a clarificar as coisas.
O trabalho coercivo existiu, foi tenebroso, mas essa verdade indesmentível não apaga o que houve antes, isto é, a luta de várias gerações de ocidentais para porem fim ao sistema escravista. Sem o seu esforço o sistema teria continuado vivo. Portugal participou nessa luta, com muitas falhas, com muitas hesitações, mas... participou, e esteve onde outros povos e nações não estiveram. Foi o primeiro país colonial a iniciar o processo abolicionista, com Pombal, e dos últimos a conclui-lo, em 1875-1878. Ignorá-lo, desvalorizar ou omitir o persistente esforço de um Sá da Bandeira para libertar e proteger os africanos é passar completamente ao lado do que foi a abolição do sistema escravista em Portugal.
Os flagelantes fazem-no, nuns casos por desconhecimento, noutros por inclinação ideológica e política. A história de Portugal, tal como a de todos os outros países, é feita por santos e pecadores, mas aqueles flagelantes que têm uma névoa política e ideológica no olhar só se interessam pelos pecadores. Olham para este tema da escravatura e não vêem santos. Nem estão interessados nisso. O que querem, então? O mesmo que quiseram os flagelantes ingleses, norte-americanos, franceses, pois há um movimento internacional por trás disto (movimento no qual as cabeças politicamente correctas que pontificam em certos comités da ONU estão profundamente envolvidas).
Por isso, e para já, querem um debate público sobre o assunto, ainda que esse debate já tenha sido feito, em devido tempo, e que se trate de uma questão histórica. Ora a História, como área do saber, não se faz com trocas de opiniões e de “palpites” na praça pública nem com likes no Facebook (nem, claro está, com os ditames da ONU). Mas os incentivadores do debate não estão verdadeiramente interessados em História. Nesta primeira fase querem apenas um tribunal popular para julgar o passado colonial português e apurar a “culpa” das suas principais figuras, desde o Infante D. Henrique a Adriano Moreira. Não querem a verdade histórica, apenas aprisioná-la dentro de uma visão parcial, antiquada e memorialista — a sua visão — do que efectivamente aconteceu. (Não, Joacine Katar Moreira, não foi a Revolução Industrial que pôs fim ao tráfico de escravos e à escravidão. Essa é uma tese marxista de 1944, que foi, há muito, contestada e ultrapassada. Se os homens pensassem apenas no seu interesse material a escravatura teria prosseguido, como os tempos modernos tão dolorosamente nos mostram).
Vai ser — já está a ser —, portanto, um debate político e ideológico em torno de princípios morais e de velhas ideias feitas. Em paralelo com esse debate os flagelantes exigirão que o Estado peça desculpa pelo que antigos portugueses fizeram ou deixaram de fazer em África e no Brasil, e que leve a cabo alterações no ensino da História e em certos aspectos da legislação. Adiante chegarão os pedidos de reparação e das correspondentes indemnizações, como já expliquei noutro artigo no PÚBLICO.
Prevejo, por isso, que continuem a vir a público cartas abertas, petições e muitas prosas e conversas destinadas a suscitar emoções, agitações, desinformações, manipulações. Escrevi, nos últimos meses, vários artigos na imprensa sobre este tema e imagino-me a escrever outros tantos nos meses que estão para vir. E lembro-me do que Rodrigo da Fonseca disse, nas Cortes, em 1840, após 14 dias consecutivos de debate público sobre a abolição do tráfico de escravos: “Todos os dias repetimos a mesma história desde 1815 até hoje, acarretando sobre ele extensas considerações que podem ser muito justas, mas que, pela maior parte, são estranhas ao assunto [...]. E que remédio tenho eu senão entrar no combate? Bem sei que nada direi de novo, mas é força dizer alguma coisa.” Graças aos modernos flagelantes sinto, agora, o que Rodrigo da Fonseca devia, então, sentir.