Os interfaces entre a tecnologia e o território: uma segunda ruralidade?
Os novos interfaces entre a tecnologia e o território, serão eles a grande oportunidade para o grande país do interior?
Os incêndios de há um mês na região Centro chamaram, mais uma vez, a nossa atenção para a dura realidade do nosso “grande país do interior”. São bem conhecidos os nossos pecados capitais em matéria de coesão do território. Trinta anos depois da adesão de Portugal às Comunidades Europeias, a política de coesão territorial é cada vez mais imaginativa, mas, não obstante, os problemas estruturais de longa data permanecem e, sobretudo, não resistem à descontinuação das políticas públicas sobre um longo período.
Após alguns anos de austeridade, eis que a esperança renasce mais uma vez. Desta vez, a revolução tecnológica e digital é de tal modo exponencial que podemos estar à beira de decretar a abolição do espaço e da distância. A mobilidade, a velocidade, a universalidade, a ubiquidade, seriam uma medida dessa aceleração tecnológica. Num país tão pequeno e tão bem servido de vias de transporte e com o acesso generalizado das gerações mais novas às tecnologias digitais, o problema da “valorização do interior” tem necessariamente de ser pensado e equacionado em outros parâmetros.
Estaremos nós equivocados ao pensar problemas novos com conceitos velhos? E os novos interfaces entre a tecnologia e o território, serão eles a grande oportunidade para o grande país do interior, trarão eles mais inteligência coletiva, mais equidade territorial e mais gente para o interior do país? Vejamos alguns ângulos de observação do problema.
1. A constelação das NBIC
A constelação tecnológica formada pelas nanotecnologias (N), as biotecnologias (B), as indústrias informáticas (I) e as ciências cognitivas (C) terá um impacto devastador sobre as ciências da vida e a saúde humana, as indústrias da alimentação e o mundo natural. O aumento dos interfaces eletrónicos e digitais com a comunicação humana irá transportar-nos até mundos desconhecidos, ao universo da robótica e do pós-humanismo. Com as NIBC seremos “cidadãos aumentados”, pós-humanos, seremos o homo connexus, conectados “e-qualquer coisa”, “tele-qualquer coisa” ou “on-qualquer coisa”. Em qualquer lugar, independentemente do “não-lugar” onde estejamos.
E quanto a estes novos “territórios NBIC”, como se apresentarão? De um lado, teremos “seres aumentados”, plenos de microchips, viajando constantemente no ciberespaço; de outro, territórios rodeados de sensores por todos os lados, permanentemente vigiados e vigiando-nos a todo o tempo. Nesta vertigem, é muito provável que a velocidade elimine a distância mas contribua, também, para o definhamento dos territórios do interior pela simples razão de que não atingem um urbanismo crítico que lhes permita contrariar os movimentos em direção ao litoral. Seja como for, importará dizer que estas NBIC serão, ainda, “redes digitais centralizadas” e que, “no seu interior”, num país tão pequeno, os territórios do litoral e do interior serão, antes e apenas, diferentes funcionalidades do mesmo território, de acordo com uma outra tipologia de territórios cada vez mais funcionalmente e tecnologicamente encaixados.
2. As Redes Digitais Distribuídas (RDD)
As “redes digitais distribuídas” serão a promessa da grande ilusão isotrópica. Ao contrário das redes centralizadas que reproduzem o poder hierárquico e vertical, as redes digitais distribuídas são “relações sem poder”, laterais e colaborativas, sem centro ordenador. As RDD fazem parte da chamada “internet primordial” ou internet dos cidadãos, através da qual se praticará a economia dos bens comuns colaborativos, uma economia simples e sem intermediários, em que os produtores são também consumidores e vice-versa. As empresas start-ups que criarem plataformas tecnológicas e respetivas aplicações serão o agente principal destas redes digitais distribuídas e aqui a imaginação não tem limites. Os espaços de coworking, os fablab, as incubadoras, os centros de investigação, serão os locais privilegiados para fazer nascer estas RDD mas a grande maioria encontra-se numa fase rudimentar e artesanal a necessitar de uma nova geração de investimento público e/ou privado.
Hoje, porém, à “nova economia imaterial” não bastam as comunidades online criadas de geração espontânea em espaços de coworking ou fablab municipais. Esta é a versão fashion do problema que temos entre mãos e que as políticas públicas de coesão alimentam amiúde, com incentivos de ocasião, sem sucesso visível ou aparente. Também não bastam as start-ups geradas em incubadoras e aceleradoras, quais corredores solitários em busca de uma pista segura que lhes garanta um mínimo de sustentabilidade.
De facto, há uma diferença abissal entre o conforto de uma rede digital gerida por uma comunidade online e o desconforto de um problema real gerido por uma comunidade offline, já para não falar da qualidade do actor-rede que administra a rede digital distribuída. Nestes termos, a RDD não será distribuída, será apenas mais um vendedor de ilusões sem impacto real sobre os problemas existentes.
3. Agricultura 4.0 e ocupação humana do interior
É inevitável, o deslumbramento tecnológico é de tal ordem que vamos ter de transitar pelo “interior virtual” antes de perceber que é muito complexo e até, por vezes, doloroso todo o processo de conversão das comunidades online em comunidades offline. Quer dizer, vamos ter de fazer um processo de aprendizagem para finalmente compreender qual é a melhor combinação de “virtualidade e realidade”.
E quanto à agricultura e a valorização do interior, eis alguns exemplos retirados das tecnologias de precisão da empresa agrícola 4.0: a gestão remota da rega, a monitorização das culturas a partir de imagens aéreas obtidas com drones, as câmaras de vigilância nos estábulos e vacarias, os robots de ordenha e alimentação, os chips nos animais para acompanhamento do seu ciclo de vida, os robots para realizar os trabalhos na vinha, os veículos autónomos como maquinas agrícolas e tratores, a sensorização da floresta (os olhos e os ouvidos das árvores), as câmaras térmicas (os olhos nocturnos dos bombeiros), as imagens por drone das zonas com maior acumulação de matos, os robots para fazer o ataque a incêndios, a recolha e tratamento da informação bruta, farming data e cloud computing, os modelos computacionais para a elaboração de cenários de intervenção, a criação de aplicações em smartphones para uso de agricultores e bombeiros, finalmente, a inteligência artificial (machine learning) para diversas simulações.
Estes exemplos mostram que na “próxima incarnação” o mundo rural estará irreconhecível, pois a “internet das coisas” estará presente desde a agricultura de precisão até à silvicultura preventiva. Mas a agricultura de precisão 4.0 será apenas um dos vetores, porventura o mais exuberante, presentes no mundo rural.
Nota Final
Num país tão pequeno como Portugal, servido por boas infraestruturas de transporte e comunicação, o problema principal não é o “repovoamento e o stock populacional” de zonas de baixa densidade, mas, antes, a organização virtuosa da mobilidade e do fluxo de população, isto é, a montagem imaginativa e eficiente de uma economia de rede e visitação no território, concebido como território-rede e baseado em serviços itinerantes e polivalentes que a tecnologia das redes sociais pode muito bem imaginar e montar.
Creio que, no próximo futuro, naquilo que eu designo como a “2.ª ruralidade”, a novidade mais importante será a emergência de uma grande variedade de redes e plataformas tecnológicas e sociais. Na 2.ª ruralidade teremos de resolver os problemas da agricultura de precisão, da silvicultura preventiva, do urbanismo reticular das pequenas cidades do interior, da economia rural dos parques e reservas naturais, da biodiversidade local e serviços ecossistémicos, da economia de recreação e visitação das amenidades e paisagens rurais, dos serviços itinerantes às populações perdidas do interior, etc.
Na 2.ª ruralidade, “os neorurais vindouros” terão aí um papel fundamental e tornarão o campo quase irreconhecível tal como o conhecemos hoje. A agricultura acompanhada pela comunidade (AAC) e a gestão comunitária e agrupada de aldeias e vilas serão uma realidade, a economia da partilha e as boas práticas da economia circular serão, igualmente, uma realidade face aos recursos ociosos, sub-empregados e esquecidos; finalmente, a patrimonialização dos recursos arqueológicos e históricos e a sua moderada turistificação serão, também, uma realidade. Não será o melhor dos mundos, mas será seguramente um mundo melhor.
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico