Quem tem medo dos números?
Existe uma recusa tácita do Estado português em tomar medidas para avaliar (e combater) a discriminação étnico-racial.
O modo mais simples de compreender a institucionalização do racismo é através do que Luh Souza e Francisco Antero, activistas brasileiros, designaram como “Teste do Pescoço”: espreita-se pela porta do hospital e calculam-se os médicos negros; estica-se o pescoço na joelharia e procuram-se empregados de balcão negros; coloca-se o pescoço numa reunião partidária e contam-se os negros em posições de destaque; ou vê-se quantos são docentes numa universidade reputada. Sendo este teste suficiente para mostrar que o racismo não pode ser reduzido ao preconceito ou a casos isolados, tal parece não surtir tanto efeito a nível político e institucional.
Quando foi divulgado o relatório da Comissão para a Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas sobre Portugal, em Dezembro de 2016, ficou mais uma vez evidente que existe uma recusa tácita do Estado português em tomar medidas eficazes para avaliar (e combater) a discriminação étnico-racial; em particular, a não publicação de dados para efeitos de monitorização das desigualdades. A publicação destes dados tem sido realizada em diversas sociedades em âmbitos como a educação, o emprego, a habitação, a justiça e a saúde, de modo a examinar a extensão do racismo e a sua evolução no tempo em função de políticas públicas concretas. A recusa do Estado português nesta matéria foi denunciada repetidamente na última década e meia pela Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância e pela Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia — com indicações precisas de como proceder a essa recolha respeitando a legislação em vigor.
Quando confrontado com a sua inoperância nesta matéria, a resposta do Estado português — na figura do Alto Comissariado para as Migrações — foi, mais uma vez, lacónica: a recolha de dados “colide com a Constituição” e “viola” a legislação de protecção de dados pessoais. Em primeiro lugar, o que está em causa são dados recolhidos de forma informada e voluntária e respeitando o princípio da auto-identificação. Tal não vai contra o princípio da igualdade consagrado na Constituição da República nem contra a legislação sobre a protecção de dados pessoais em vigor (Lei 67/98) — que permite a recolha de “dados sensíveis”, desde que “com garantias de não discriminação”. A lei considera também que a recolha destes dados se justifica em situações de interesse público, devendo ser consentida pelo titular e os dados anonimizados.
Em segundo lugar, e apesar do que se alega, esta recolha tem sido feita em Portugal. Terá o Alto Comissariado esquecido que a confissão religiosa é um dado “sensível” recolhido nos censos nacionais desde 1981? E que, na educação, dados estatísticos desagregados por “grupo cultural” (concebidos como indicadores étnico-raciais) foram recolhidos pelo respectivo Ministério entre 1991 e 2000, e publicados pelo Secretariado Coordenador dos Programas de Educação Multicultural (o Entreculturas)? Tais dados foram mostrando a existência de taxas de aproveitamento escolar desiguais, sem que se tenham desenvolvido iniciativas públicas dirigidas a esta questão que não as formas costumeiras de multiculturalismo festivaleiro no salão polivalente. A recolha de dados pelo Ministério da Educação continuou entre 2001 a 2004, até o PCP intervir após tomar conhecimento sobre como se inquiria essa informação aos encarregados de educação (por exemplo, não se podia ser cigano e português). Foi interrompida a recolha — ou não?
O Programa Escolhas — a iniciativa coqueluche do Estado em matéria de intervenção social junto dos jovens, coordenado durante muitos anos pelo alto-comissário, Pedro Calado — requer esses dados das associações candidatas a financiamento, sob o alibi da caracterização do “público-alvo”. Isto é, continuam a recolher-se os dados sem que eles sejam tornados públicos, utilizados para analisar o efeito das iniciativas políticas nas desigualdades étnico-raciais, ou para diagnosticar esferas de intervenção prioritária. Tal constitui o que David Gillborn denominou de racialização ilegítima: o discurso usa categorias raciais sem se comprometer com a igualdade.
Em terceiro lugar, o argumento que a publicação dos dados produz discriminação. No contexto britânico dos anos 1970, as estatísticas raciais sobre criminalidade foram amplamente usadas pela polícia e pelos media, ajudando a sustentar noções racistas. Face a esta discriminação, historicamente enraizada, foram os próprios movimentos sociais de base que usaram esses dados para demonstrar a existência de racismo institucionalizado, que se repercutia no tratamento policial discriminatório através da prioridade dada à vigilância de pessoas com certos perfis raciais (e não só, como no acesso à saúde e à habitação, no sucesso educativo e no mercado de trabalho). Vemos assim como os números podem servir fins políticos diametralmente opostos, e que têm sido as próprias populações racializadas a exigir a sua publicação como uma forma de responsabilização pública — em contextos diversos como a Austrália, o Brasil, os Estados Unidos ou a África do Sul. Em Portugal, a publicação destes dados foi reivindicada numa carta enviada às Nações Unidas, em finais de 2016, por 22 associações de afrodescendentes.
A publicação de dados desagregados por pertença étnico-racial torna evidente que o combate ao racismo não pode estar centrado na vigilância do “outro” (o negro, o cigano, o imigrante), mas na monitorização da acção do Estado face à sua institucionalização. Numa democracia assente numa política de transparência e comprometida com os direitos fundamentais, a figura do guardião de números é obsoleta.
A opinião aqui veiculada é da responsabilidade do investigador, não constituindo qualquer posição oficial do Centro de Estudos Sociais