Sabiam que Cleópatra era de Idanha-a-Velha?
O grande VOC, ou Vocabulário Ortográfico Comum, afinal é um matreiro decalque do Houaiss. Com melhorias? Antes fosse.
O título pode parecer um pouco estranho, mas o que está na origem dele é bem pior. Lembram-se do Vocabulário Ortográfico Comum, que vinha resolver todos os problemas a quem queria escrever português segundo as regras do novo Acordo Ortográfico de 1990 (AO)? Pois já existe. Já temos o Graal, a bússola vital, a salvação! E ainda há quem reclame? Há, uns ingratos. Visitemos, pois, a catedral da Ortografia com maiúscula. Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa é o título. E logo abaixo vem uma lista de bandeirinhas onde é preciso clicar. Em último, vem a “versão comum” (de “todos os países”) e, acima dela, as nacionais. Três estão inactivas: Angola, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Mas há vocabulários nacionais para as restantes: Brasil (VOLP), Cabo Verde (VOCALP), Moçambique (VONMoz), Portugal (VOP) e Timor-Leste (VO-TL). Ora verificamos que os primeiros 100 vocábulos dos 32291 da letra A do vocabulário global são praticamente iguais aos nacionais, do Brasil a Timor. E têm, todos eles, um excesso de palavras começadas por duplo A (aacheniano, aaleiniano, aaná, aaquenense, aarónico, ãatá, aavora, etc.). Procuramos em vários dicionários, com ou sem AO, e nenhum iguala tal lista, excepto o Houaiss (antes ou depois do acordo). Uma comparação mais cuidada confirma o óbvio: o grande VOC, ou vocabulário comum, afinal é um matreiro decalque do Houaiss. Com melhorias? Antes fosse.
Voltemos a Cleópatra. Como se sabe, o novo AO aboliu o P de Egipto. Um utilizador do VOC que digite “Egipto” tem como resposta “A forma egipto não se encontra atestada neste vocabulário”. Aí, ele lembra-se de que o P caiu. E digita “Egito”. Ora cá está. Mas como se chamam os habitantes do Egito? Então, usando o motor de busca dos vocabulários (primário, diga-se), procura palavras que comecem por “egit”. E o que lhe surge diante dos olhos é “egitaniense”, três vezes; além de Egito, claro. Ora o nosso bom utilizador, se dominar mal o português, concluirá que um egitaniense é um cidadão do Egito e, feliz com a descoberta, escreve: “a egitaniense Cleópatra…” E segue adiante.
Puro engano: egitaniense é, como o atestam vários dicionários, um natural de Idanha-a-Velha, ou da Guarda, vindo o nome do antigo topónimo latino Egitania. Um amigo diz-lhe, então, que terá de procurar em palavras começadas por “egip”, do antigo Egipto. Ele procura e sai-lhe uma lista de 26: egípcia, egipcianismo, egipsiense, egiptino, egiptólogo, egiptologista, etc. Na verdade não são 26, são 15. Mas, tal como no “egitaniense” em triplicado, também aqui surgem duplicados ou triplicados os mesmos vocábulos, consoante acumulem as qualidades de adjectivos, substantivos femininos ou masculinos. Não é serviço público, é truque baixo: quanto mais duplicados ou triplicados houver, maior é o número de “vocábulos” recenseados. De A a Z, o VOC global soma 271.809 vocábulos. Tirando 2200 estrangeirismos, que também ali se incluem, remetendo para uma lista de “formas não adaptadas”, sobrarão 269.609. Ora como em todas as colunas (só são visíveis 100 vocábulos de cada vez) há duplicações, o número real de vocábulos do VOC andará abaixo dos 190 mil que José Pedro Machado (1914-2005) coligiu, com paciência de Job, no seu Grande Vocabulário da Língua Portuguesa (2001) a partir dos “trabalhos congéneres de Soares Amora e de Rebelo Gonçalves”. E, neste, a palavra “egitaniense” ocupa só uma linha, com a indicação “adj. e s. 2 gén.” Sem truques.
Dezasseis anos passados, em lugar de estarmos perante o desenvolvimento natural de tais trabalhos, estamos perante um logro. Que nem é monumental, é pífio. Qualquer estudante de informática se desmanchará em gargalhadas ao ver o sistema arcaico em que o novo VOC funciona. Mas nem tudo está perdido. Com o VOC ficamos a conhecer palavras novas! Como “abacaro” ou “hábia”. Estão lá, nos vocabulários nacionais e no geral, mas não constam de quase nenhum dicionário conhecido, em papel ou online. Raridades! Só o Word Hippo e WebDicio dizem que “abacaro” será algo “perteneciente a los abacaros o individuo de este pueblo de América del Sur” (embora o Dicionário da Real Academia Española seja claro: “La palabra abacaro no está registrada en el Diccionario”); e “hábia” só aparece na Infopédia, designada como “Angola: sovaco, mau cheiro dos sovacos” (sic). Pormenor: Angola não ratificou o Acordo Ortográfico e tudo indica que não o ratificará.
Parece uma anedota? Pior: é um grosseiro embuste. Que nos sai muitíssimo caro.