Cova da Moura sem lei?
Esperemos que este caso levado à justiça formal permita enfim ao país proceder a um ato de justiça substancial.
O mito de uma Cova da Moura sem lei vem dos meados dos anos 90. O semanário O Independente fez então sair uma primeira página com “os bairros de Lisboa onde a polícia não entra”. A Cova da Moura era dos mais proeminentes destes bairros — e era também um bairro predominantemente negro. Passado pouco tempo, notícias no Expresso e reportagens na SIC, citando fontes policiais, voltavam a referir a Cova da Moura como um local onde gangs criminosos proliferavam e a polícia não conseguia entrar. O preconceito racial facilitou, é claro, a transmissão dessa narrativa. Uma boa parte do resto da imprensa e da sociedade acreditou no que as fontes policiais diziam e a fama do bairro cristalizou-se naquela ideia de que a polícia não conseguia lá entrar.
Só que isto era mentira. E sei que era mentira porque nessa época, como voluntário da Associação Moinho da Juventude, eu dava aulas no Alto da Cova da Moura — o nome correto do bairro — e lá ia todas as semanas. A polícia foi sempre presença habitual nas ruas do bairro, com toda a normalidade. E uma ou duas vezes por semana eu via, com os meus olhos, uma realidade que jornais e televisões negavam — uma primeira experiência, profundamente frustrante, acerca de como uma narrativa fomentada por fontes interessadas se pode rapidamente tornar inamovível entre a população em geral.
Há mais. Nas conversas ocasionais no bairro uma outra história foi emergindo. Era contada até com um encolher de ombros: sim, claro que a polícia entrava no bairro; nos dias em que os homens recebiam dos trabalhos na construção civil até acontecia confiscarem-lhes o dinheiro como se fosse produto da venda de droga, diziam-me, na convicção de que nenhum queixoso entraria pela esquadra a declarar-se vítima de extorsão, uma vez que o trabalho era em geral sem contrato e a origem honesta do dinheiro jamais poderia ser provada. Ao contrário do mito anterior, que eu sei que é mito porque vi a realidade, não tenho forma de saber se esta outra história não é apenas um contra-mito disseminado entre a população do bairro. Mas o que retenho da justaposição das duas histórias é que desde esse tempo, entre o preconceito da população exterior ao bairro e a passividade de muitos dos seus habitantes, a Cova da Moura era já o símbolo de um desencontro de narrativas.
Para quem era de fora, “a Cova da Moura sem lei” era aquela onde a polícia não entrava. Mas para quem era de dentro, a “Cova da Moura sem lei” era aquela em que a polícia agia com regular impunidade. Sem a imagem que cá fora tínhamos da primeira, a segunda não poderia existir lá dentro.
E assim foi, até esta semana. Graças à coragem de um grupo de jovens do bairro que levou por diante uma queixa contra violências policiais que consideram ter sofrido em 2015, graças à persistência da advogada que os acompanhou, e graças à ação objetiva do Ministério Público, temos pela primeira vez na Cova da Moura uma história que é capaz de não se ficar pelo desencontro de narrativas. Segundo acusação deduzida pelo Ministério Público, dezoito agentes da PSP serão agora julgados pelos crimes de “falsificação de documento agravado, denúncia caluniosa, injúria agravada, ofensa à integridade física qualificada, falsidade de testemunho, tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e sequestro agravado”, todos relativos aos acontecimentos de 2015. Veremos o resultado do julgamento para tirar conclusões. Mas a acusação é já uma decisão cujo significado não pode ser desprezado.
Esperemos que este caso levado à justiça formal permita enfim ao país proceder a um ato de justiça substancial. Esperemos que ele nos dê a ocasião para reconhecer que há no nosso país um racismo estrutural que tem roubado a muitos cidadãos, particularmente jovens, o acesso a oportunidades iguais de desenvolvimento. E depois desse reconhecimento, esperemos que se tomem finalmente decisões claras para ajudar a prevenir esse racismo estrutural e a corrigir os danos que ele provoca. Já tarda.