O Baile dos Enfiteutas

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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Não saberão os meus leitores mais simples que a condição de castelão ou alcaide me arrasta para obrigações que não desejo nem cultivo. O que eu esperava era a possibilidade de usufruir de um espaço folgado e hermético às brutalidades do mundo, com um tempo próprio, independente das pressões de horários ou de conveniências que não sejam os meus, organizados de modo a poder apreciar a minha arte em paz e sossego, na companhia de quem convido para partilhar dessa paz frutuosa. Não é bem assim. Tão regular como insistentemente, entre as cartas e telefonemas de leitores encantados e alguns, raros, enfurecidos, aparecem-me convites, sugestões e aparentes intimações a juntar-me a associações, a participar em encontros de todo o tipo, a contribuir para múltiplas realizações de índole maioritariamente gastronómico-cultural.

O convívio com outros castelães tem sido gerador de impressões muito ricas mas imprevisíveis, já que é uma classe que tanto alberga o filósofo benigno e perspicaz que cultiva flores exóticas em estufa envidraçada como o louco furioso que, julgando-se traído concertadamente pela família e pelo pessoal ao seu serviço, se pendura nos lustres de cristal e se entretém a atirar caroços de ameixa ou de nêspera aos visitantes, projectados pelo ar canalizado pela conformidade da sua cavidade bucal e por uma certa dose de desdém. Lembro-me ainda do morgado que, nas masmorras do seu castelo, orientava uma equipa na construção de uma arca de Noé com radar e ar condicionado, sempre vestido com um fato-macaco de veludo vermelho, de cujos bolsos retirava coxas de frango assado que roía pelos cantos, absorto em cálculos mentais de trigonometria, um produto de inspiração cruzada em Winston Churchill, D. João VI e Bento de Jesus Caraça.

Mas o que os meus leitores mais simples não sabem nem podem saber, no seu viver simples de considerar um apartamento como casa permanente em vez de acampamento precário, é que a prática da castelaria exige um fluxo de capitais próprios da mesma ordem de grandeza dos obtidos corriqueiramente por aqueles que por vezes são apanhados com as calças na mão em contas de paraísos fiscais, seja via construção, intermediação, exploração, comercialização, especulação, tráfico ou outras vias verdes para o banco.

Os leitores mais simples, na sua vida facilitada de desconhecimento dos custos reais da propriedade, iludidos pelos impostos únicos de circulação dos seus automóveis Audi pré-2007 e pelo Imposto Municipal sobre Imóveis dos seus bangalós de alto índice de vetustez, ignoram as dificuldades de conservação de um monumento que deveria ser de interesse público ou municipal, mas que, se o for, obriga o proprietário a pedidos de licenças intermináveis nem que seja para pintar a porta do cavalo, enquanto, do outro lado da praça, qualquer vilão tem liberdade de cobrir, impunemente, todo o terraço da frente de um terceiro andar com uma marquise em alumínio em estilo forte e feio, com descarga de águas pluviais directamente para o meio do passeio da vila ou cidade. Não sabe também o patego que os custos com aquecimento interior de um castelo durante o Outono, o Inverno e a Primavera igualam – quando não superam – o PIB do Liechtenstein e que a necessidade de área coberta é interminável.

Só para dar uma ideia da dimensão dos problemas àqueles cuja ignorância não inibe de emitir opiniões, espero que baste o exemplo da vastidão do guarda-roupa exigível ao exercício dos cargos honorários que se espera que uma pessoa na minha posição exerça, com devido indumento específico: presidente do grémio literário, dos bombeiros voluntários, da banda filarmónica, da associação columbófila, da exposição anual de flores, da secção numismática, da secção filatélica, do rancho folclórico, da secção de espeleologia, do concurso de quadras de S. Pedro, da feira anual de gado, do leilão popular para angariação de fundos para a romaria a Santa Leocádia, do Museu da Lousa, da Associação de Castelãos Ibéricos, de irmão da Confraria do Leitão, da Confraria do Bacalhau, da Confraria da Posta Regalense, da Confraria do Cabrito Assado, da Confraria dos Vinhos Verdes, da Associação de Produtores de Cerveja Artesanal, da Confraria dos Queijos (a que tive de renunciar por objecção de consciência), da Confraria dos Enchidos, da Confraria do Pão-de-ló, da Confraria da Aletria, da Confraria das Sopas-secas, do Clube do Automóvel Antigo, do Clube Municipal de Leitura, do Centro de Pesca Desportiva Sustentável, da Comissão Municipal para a Inclusão, da Comissão de Preservação do Uso de Croças, da Associação de Defesa do Louva-a-deus-pintado, da Associação de Defesa do Porco-espinho-serrano, da Associação de Defesa das Lontras, do Observatório de Lepidópteros Autóctones, do Centro de Preservação das Desfolhadas, da Associação dos Espoliados do Grés e da Associação de Vítimas do Caulino.

Para estas participações apenas, contabilizo 34 fatos diferentes, com chapéus ou bonés complementares, gravatas, laços e lenços, calçado, meias, emblemas, insígnias e condecorações. Tal volume de apetrechos e a sua organização para pronta utilização não se compadece nem se compatibiliza com guarda-vestidos, guarda-fatos ou guarda-roupas convencionais em aglomerado de madeira de desgaste rápido. Não se dispensa uma pequena divisão adequadamente compartimentada para esse fim.

Mas a maior parcela de despesa fixa tem de ser a de salários com pessoal. Como muito bem perguntava um operário letrado que não tive o gosto de conhecer, “Quem construiu Tebas, a das sete portas? Nos livros vem o nome dos reis, mas foram os reis que transportaram as pedras?”. Curiosa pergunta, denotando talvez uma incapacidade de apreensão do sentido das palavras: o operário opera, o rei rege. Como já bem sabiam Quéops, Quefren e Miquerinos (ou, melhor, Khufu, Khafre e Menkaure), quem quer fazer umas obras em casa vê-se aflito para arranjar pessoal e mais ainda para que todos compareçam no dia e hora marcado. Mas já passou pela cabeça de alguém que não esteja ligado ao negócio dos manuais escolares publicar os nomes de todos quantos trabalharam nas Pirâmides de Gizé? Mesmo a lista de contribuintes para a aquisição do quadro do Sequeira no Museu Nacional de Arte Antiga interessa a alguém que não aos próprios para mostrar aos filhos, netos e afilhadas?

Tomemos o exemplo do baile anual dos enfiteutas, que eu, como castelão, tenho o dever e a tradição de organizar, no salão maior do castelo. Em tal acontecimento de ressonância concelhia, ser-me-ia possível ser organizador e, simultaneamente, encerar o soalho, lavar as cortinas, limpar os vidros dos lustres, arear a baixela, receber os convivas, ser músico do baile, cozinhar a ceia e servi-la? Absurdo! Para isso conto com o meu leal mordomo Galhardo, a esquiva governanta Zulmira, o pessoal de dentro, o pessoal de fora, o feitor, o jardineiro, o guarda-portão, o guarda-relógios, o conservador de antiguidades, a bibliotecária que me organiza os livros e os papéis.

É claro que sobre uma massa salarial deste calibre paira sempre o fantasma da falta de liquidez que ameaça trazer aos meus domínios, de resto saudáveis, uma “troika” fatal de credores a que evito recorrer. Com a ajuda do meu consultor financeiro (mais uma avença para pagar) analiso as minhas opções de negócio para gerar capital: instalação de uma antena de telecomunicações, instalação de painéis fotovoltaicos para venda de energia eléctrica à rede, criação de patos, turismo rural, plantação de kiwis, aluguer de espaços para casamentos, baptizados, despedidas de solteiros, rodagem de filmes, gravações de telenovelas, torneios de badminton. Opto pela transformação da pequena aldeia desertificada que me dá o título de marquês numa colmeia de “airbnb” – um dos novos conceitos que puxam os preços das casas e dos arrendamentos para níveis estratosféricos – e utilizo o capital estrangeiro para financiar a manutenção de um castelo português.

O Baile dos Enfiteutas, já agora, foi um êxito. Tecnicamente, deveria ser o Baile dos Caseiros (no Sul, rendeiros), pela extinção da enfiteuse pela Constituição de 1976, mas a alteração de uma designação simbólica e poética como essa seria tão lamentável como passar a chamar “Liga de Honra” ou “II Liga” à Segunda Divisão do Campeonato Nacional de Futebol. Detesto bailes, mas persisto na salvaguarda da tradição ancestral de um dia de festa muito especial, um dia de convívio, de retribuição. Enquanto houver poesia partilhada, é de manter.

Correio Premente

De Fortunato de Almeida, lugar da Bugiganga, freguesia de Urrô, concelho de Arouca: “Era só para lhe agradecer ter acedido ao meu pedido e ter tido a gentileza de mencionar na suas crónicas quer as bandas filarmónicas, quer o musgo. Então este último, tão esquecido pelos poetas como pelos governantes, foi alvo de destaque merecido. Há certos desprezos que não se compreendem. Quer outro exemplo? As broas Castelar, que foram criadas pelos irmãos Castelar, proprietários da Confeitaria Francesa, fundada em 1860 na Rua do Ouro, em Lisboa. Para quando uma estátua dos irmãos Castelar? Obrigado.”

Nada posso adiantar sobre as estátuas, excepto, talvez, que, quando chegar a hora dessa homenagem (“tributo” é um imposto, não uma consagração), o meu gosto burguês preferiria uma abordagem mais canónica do que a que foi feita pelo artista vanguardista que retratou o Cristiano Ronaldo no aeroporto do mesmo nome. Mesmo que a estátua proposta, por hipótese, fosse da própria broa Castelar, em vez da dos seus autores, eu insistiria neste ponto.

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