Hoje não vamos pensar em nada, só em nós. Aqui, na minha biblioteca, tenho uma mesa grande, sólida e maciça sobre a qual descansam habitualmente livros que eu resgato ao sono vertical das estantes para os pôr a trabalhar em conjuntos que construo, guiado por um fio de raciocínio que inevitavelmente se bifurca, para se tornar a bifurcar mais à frente. E dessas bifurcações faço conversas com pessoas para as quais caminho e que se tornam minhas interlocutoras quando me lêem e me entendem, mesmo que do outro lado do Mundo, provando-me que as entendo. Tal como tu. Precisamente como tu.
O tampo desta mesa de madeira belíssima, onde pousam os raios de sol que fogem às cortinas de cambraia agitadas pela brisa, fala connosco, seus primos de carbono animado, através de cada veio exposto à transparência de um verniz protector que, tal como certo nylon sobre certos volumes feminis matematicamente proporcionados, é véu que faz ressaltar o encanto do que é encantador. Mesmo o que pode ser tomado por imperfeições, as marcas de uso, que podem ser as de fundos de copos molhados, líquidos entornados, contusões, queimaduras, são provas de vida, sinais de história, de relacionamento com gerações de mais novos e mais velhos. Tantos anos para chegar até mim...
O que tenho hoje ali, sobre isso tudo, é um pedaço quadrado do que poderia ser o verniz da minha mesa, se se conseguisse dar demãos dele sobre si mesmo, infinitamente, sem suporte inicial, até termos pelo menos meio centímetro de espessura de um material mágico, leve, macio, transparente e tingido de luz do nascer do sol. Não é possível, mas aqui está. E é uma das formas mais anticientificamente exactas que tenho de identificar potenciais compatibilidades interiores com outras pessoas. Chamam-lhe âmbar. Chamo-lhe “detector de sensibilidades”. É uma máquina muito simples que, regra geral, funciona: a luz entra pela resina fóssil e sai pelos olhos da pessoa examinada.
O meu pedaço de âmbar, por sorte, soma à dança de brilhos e cores a particularidade de encerrar um hóspede permanente, uma pequenina flor aprisionada no momento em que a resina escorreu da árvore e a congelou, adiando-lhe a morte, mantendo-a sempre viva, sempre bela, enquanto a armadilha de mel foi endurecendo. À transparência, podemos ver uma alegoria ao casamento. Uns mencionarão a poesia; outros, o aprisionamento. Outros não mencionarão nada. Mas os que me interessam, sobretudo, são as que falam mais pelos olhos do que pela boca que mata o peixe.
Sendo raro e belo, o âmbar é precioso, o que significa que, exceptuando aqueles cidadãos que se conseguem rodear de quantidades excepcionais de moeda forte ou de admiradores com muita largueza de ideias e meios para as concretizar, só conseguiremos vê-lo em pequenas amostras, talvez pendentes de orelhas ou pescoços afortunados. Mas para ti, que gostas destas coisas e lamentas que apareçam muito de vez em quando, em quantidades racionadas, tenho em cima da mesa, mesmo ao lado do meu quinhão de néctar vitrificado um pouco mais claro do que um rebuçado da Régua, mas quadrado, um livro que te vai interessar, porque fala de uma realização impossível com total ligação a este material de sonho.
1701. Frederico I foi coroado rei da Prússia. Membro da família dos Hohenzollerns, que controlavam o comércio do âmbar (extraído então, com redes, do mar Báltico), financiou a construção, no seu Palácio Real de Berlim, de um projecto de enorme complexidade técnica e de incalculável custo: uma sala totalmente decorada com painéis compostos por peças de âmbar justapostas.
1713. Frederico I morre sem ver concluído o seu projecto. Frederico Guilherme I, seu filho, oferece ao Czar Pedro I da Rússia a incompleta Sala de Âmbar. Mas Pedro, “o Grande”, morre sem conseguir reconstituir os painéis no seu Palácio de Verão em Sampetersburgo.
1743. A Imperatriz Isabel manda transferir a Sala de Âmbar do Palácio de Verão do seu pai para o seu novo Palácio de Inverno, nas margens do rio Neva, e em 1755 manda transferi-lo para o Palácio de Catarina, sua mãe, em Tsarskoye Selo, a 25 quilómetros de Sampetersburgo, onde ficou incompleto.
1762. Catarina II, coroada Imperatriz da Rússia, manda completar a sala. Nos quatro anos seguintes, são adquiridos de mais de 400 quilogramas de âmbar da Prússia.
1941. Os conservadores do Palácio de Catarina mandam retirar todos os tesouros para que não caiam nas mãos dos invasores nazis. A Sala de Âmbar, não podendo ser desmontada, fica no seu lugar, disfarçada sob camadas de papel, tecido de algodão e gaze.
1944. Os conservadores voltam ao palácio. A Sala de Âmbar está vazia.
1979. Inicia-se a recriação da Sala de Âmbar desaparecida, seguindo fotografias e planos da original.
2003. A nova Sala de Âmbar é inaugurada. Pode ser vista aqui, em panorama de 360 graus.
2004. “The Amber Room”, livro de Catherine Scott-Clark e Adrian Levy, é editado em Londres pela Atlantic Books (existe edição brasileira, “A Sala de Âmbar”, da editora Record). É esse livro que tenho ali em cima da mesa, ao lado do quadradinho de âmbar com a flor lá dentro. O livro é para ti; quanto ao âmbar, não me leves a mal, mas vou tentar conservá-lo na mão um pouco mais.
Correio Premente
De Circe Guisado, lugar de Mulher Morta, freguesia de Ourém, concelho de Vila Nova de Ourém: “Venho falar-lhe de uma tradição local que foi muito prejudicada pela Lei do Tabaco, embora não tenha nada a ver. Aprendi com a minha mãe, que aprendeu com a minha avó, a fazer defumadoiros, que é uma arte de espantar espíritos esquecidos ou que se enganaram no destino. Para isso tenho de fazer umas fogueirinhas de ervas santas que podem ser alecrim, queiró, carqueja, arruda, consoante o caso, num tabuleirinho de chapa, para pôr debaixo das cadeiras ou das mesas das casas das pessoas e fazer bem. Ora bem, as próprias pessoas que me chamam não dizem nada, mas se houver uma vizinha que faça queixa, estou sujeita a pagar multas. Pior ainda quando tento purificar os ambientes de cafés, juntas de freguesia, bandas filarmónicas, automóveis e autocarros de excursões, que tão precisados estão, de onde sai logo o povo aos gritos e aos berros, só a provar a minha, de que ali havia desarranjo espiritual sim senhor. Não concordo que umas fogueirinhas de nada e medicinais caiam nas leis contra o tabaco, isso sim uma erva má, e que a CEE me impeça de praticar o meu passatempo favorito, guiando para longe almas penadas e, de caminho, políticos gananciosos, aranhas, ratos e cobras. Como agora há um ambiente de pirofobia acicatado pelo Governo, já tive de fugir de vários locais sob ameaça de agressão. Até os árbitros de futebol são defendidos pela polícia, só eu é que não. Está mal. E depois não querem que as pessoas se radicalizem. Não estou a ameaçar, porque não gosto que me façam uma rusga à casa agora que encerei os tacos, mas isto assim não é liberdade. Não há liberdade de defumar.”
Coloca-me em posição melindrosa. Por que não monta uma banquinha no Jardim de S. Lázaro para recolher assinaturas de apoio ao seu protesto, aproveitando os transeuntes que agora, em Junho, por ocasião das festas dos santos populares, vão passar por lá aos magotes, para irem ler livros à Biblioteca Municipal do Porto? Já pensou em contactar as associações de produtores de enchidos e presuntos defumados, para saber como se protegem quer de linchamentos, quer de acções judiciais, que podem ser ainda piores? Vá, use as possibilidades infindas que lhe proporciona o nosso sistema democrático. Afinal, estamos ou não num país livre? Isso, pelo menos, é o que costumo ouvir nas séries de televisão feitas no país do “Poupas Amarelo” (isso e “chamem uma ambulância!”). Se eles lá se acham livres, então e nós?...