A inutilidade do G20
Aqueles que depositam grandes esperanças no G20 convém que olhem melhor para a composição dos líderes mundiais que habitualmente participam nestas cimeiras, para não se auto-iludirem.
1. Para os globalistas e outros entusiastas da governação global as cimeiras do G20 são uma espécie de clímax apoteótico. Um ambiente de excitação mediática normalmente acompanha a sua realização. Contribui para criar a ideia que se vão tomar decisões importantes para o futuro da humanidade, numa base cooperativa e de espírito universalista entre os líderes mundiais. A realidade é outra, muito mais trivial, e, em certos aspectos, até bastante perversa face a uma genuína e democrática governação global: o G20 contribui para erodir os poderes e competências das organizações verdadeiramente globais como a Organização das Nações Unidas (ONU), onde todos os Estados do mundo têm assento. É fundamentalmente uma versão pós-moderna dos directórios de potências usuais no século XIX, na época um restrito clube europeu, hoje mais alargado. (Apesar de tudo, os tempos são outros e a Europa / Ocidente estão em retrocesso.) Na prática, pretende impor-se aos restantes 173 Estados do mundo que são membros da ONU — talvez estes devessem formar um G173 (ou um G150, se consideramos que a União Europeia está representada também.) Tal como outras associações, formais ou informais, de potências do passado, assenta numa lógica de poder, seja ele económico, político ou militar. O facto de ter mais membros do que o G7 — ou de ter Estados que, no seu conjunto, serão 2/3 da população mundial e 80% do comércio mundial — não altera a sua lógica fundamental: continua a ser um directório de potências que se nomeou a si próprio.
2. O globalista incauto imagina o G20 como o fórum no qual, para além dos problemas económicos e financeiros globais, assuntos de grande importância para a humanidade e elevado valor moral, vão ter, ou deviam ter, uma solução: problemas ambientais, crise dos refugiados, comércio livre e justo, etc. Na realidade, pouco ou nada disso acontece, mesmo no terreno económico e financeiro, que está na sua origem. Em 2008, após o desencadear da crise financeira nos EUA, a Cimeira de Washington do G20 em finais do ano, era apresentada como um “novo Bretton-Woods” (por referência à conferência que decorreu em 1944 nos EUA, para arquitectar a ordem económico-financeira-comercial do pós-guerra). Uma declaração final conjunta de um comprometimento com a estabilidade dos mercados financeiros e economia mundial — suficientemente genérica para todos saírem satisfeitos —, deixou muita gente convencida que se tinha feito história: um “novo Bretton-Woods” estaria em marcha. Claro que nada disso aconteceu. (O que tivemos, depois disso, foi até uma grave crise da Zona Euro e uma continuada crise financeira e económica internacional.) Não aconteceu nenhum “Bretton-Woods”, dada a complexidade do assunto, a divergência de interesses para além dos aspectos de superficialidade, e a morosidade da implementação de um novo sistema digno desse nome.
3. Nesta cimeira de Hamburgo, ocorreu algo similar. Na realidade, o acordo mais palpável e importante foi bilateral e paralelo à reunião do G20 (podia ter ocorrido noutro local qualquer onde Donald Trump e Vladimir Putin se encontrassem): o entendimento entre os EUA e a Rússia num cessar-fogo em partes da Síria. No que diz respeito às questões ambientais — um assunto inquestionavelmente importante e uma espécie de tema "cartaz" deste G20 —, a declaração final refere que foi "tomada nota da decisão dos EUA se retirarem do Acordo de Paris" (algo que já se sabia oficialmente muito antes desta cimeira). Ao mesmo tempo, é também referido que "os líderes dos outros membros do G20 afirmam que o Acordo de Paris é irreversível". Acrescenta-se ainda nessa declaração existir um "forte compromisso" com este acordo, "avançando rapidamente para a sua plena implementação, segundo o princípio de responsabilidades comuns e diferenciadas e respectivas capacidades." Soa bem, mas é vago. Veremos em que se vai traduzir na prática o compromisso. Há inúmeros aspectos operacionais em aberto do qual depende a sua concretização efectiva, desde os encargos financeiros até verificação do cumprimento das metas com que muitos dizem se comprometer. Para já, são declarações de intenções abstractas, subscritas num aparente consenso do qual apenas Donald Trump se auto-excluiu. Mas não nos iludamos: para muitos é ideia é ser um compromisso a custo zero, ou usá-lo para obter ganhos noutros assuntos que tocam o seu interesse nacional.
4. Aqueles que depositam grandes esperanças no G20 convém que olhem melhor para a composição dos líderes mundiais que habitualmente participam nestas cimeiras, para não se auto-iludirem. Não precisamos de grande imaginação para ter uma ideia do que Vladimir Putin (Rússia), Recep Tayyip Erdogan (Turquia), Xi Jinping (China), Mohammed Al-Jadaan (Arábia Saudita, em representação do rei Salman bin Abdulaziz, que não se deslocou a esta cimeira de Hamburgo), entre outros, pensam mesmo dos ideais de uma governação global democrática, dos direitos humanos, dos refugiados e dos problemas ambientais. Que os globalistas ocidentais tão ansiosamente esperem soluções de um G20 com esta composição é algo que diz muito da superficialidade, ou ingenuidade, com que olham para a política internacional. Claro que com Donald Trump na presidência dos EUA, mesmo as inconsequentes declarações de intenções, habituais das cimeiras do G20, são hoje mais difíceis em assuntos como o ambiente, os refugiados, ou até o comércio internacional. Quando são possíveis, são deliberadamente feitas sem compromissos controláveis, como no caso das questões ambientais — podemos ver aqui uma hábil diplomacia, ou cinismo político. Não é surpreendente: é um heterogéneo directório de realpolitik, entendida como sempre foi no passado. Há uma primazia pragmática dos interesses sobre os ideais e os valores morais. A diferença fundamental é que no mundo actual raramente alguém assume isso abertamente, como acontecia no século XIX. O cinismo político é hoje bem mais sofisticado e sabe adaptar-se à sociedade da imagem.
5. As cimeiras do G20 permitem à sensibilidade globalista actual ter o seu fórum e discutir problemas comuns da humanidade. É algo que soa sempre bem apesar de ser fundamentalmente inconsequente, pelas já apontadas contradições do G20: um directório de potências com interesses díspares. Mas há um aspecto onde não são inúteis: permitem alimentar o mundo mediático que vivemos. Aí atingem a plenitude do que se pode ambicionar de um bom espectáculo. Angela Merkel, que vai disputar eleições legislativas na Alemanha, queria um palco internacional (e interno) para si, talvez convencida que podia ocupar o lugar deixado vago por Donald Trump na liderança do mundo ocidental. Mas a ideia de convocar uma cimeira para a cidade de Hamburgo — não numa estância isolada nas montanhas, ou numa afastada ilha, como habitualmente fazem estes clubes exclusivistas das elites —, deu o palco aos manifestantes anticapitalismo e antiglobalização. O mundo já quase se tinha esquecido que eles existiam. Provavelmente, desde a falhada ronda do milénio da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Seattle, nos EUA, em 1999, que não se assistia a uma tão empenhada batalha campal, entre estes e a polícia nas ruas. É sempre bom ver gente disposta a defender as suas convicções com ardor. Para além do palco para os manifestantes antiglobalização, estas cimeiras preenchem o ego de muitos políticos, e não é apenas o caso de Donald Trump. Afinal, vivemos num mundo global e de imagem. Emmanuel Macron, o recém-eleito presidente francês, é um caso curioso desta ambição. Como estreante, não quis passar despercebido. Na foto de grupo, afastou-se do lugar que lhe estava reservado no protocolo, para se colocar bem visível ao lado do Presidente dos EUA: fait-divers ou realpolitik a la française?