Afinal, quem manda na TAP?
A solução encontrada pelo Governo não cumpre o que se propôs e expõe a TAP a uma situação de alto risco.
“É preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma”
Tomasi di Lampedusa
Realizou-se, no passado dia 30 de Junho, a Assembleia Geral da TAP para a concretização da reversão parcial da venda da nossa companhia aérea feita à Atlantic Gateway pelo anterior governo, em condições que sempre considerámos ilegais, e que nos levaram a apresentar uma queixa-crime junto da PGR contra Neeleman e Pedrosa, por falsas declarações, e contra dois ministros dos governos anteriores e a Parpública, por terem comprometido o Estado a assumir a responsabilidade da dívida, o que não só alterava a posteriori os termos do concurso público, como tinha dispensado o visto do Tribunal de Contas.
Poucos meses depois da tomada de posse, e cumprindo uma promessa eleitoral, o Governo anunciou a recuperação de 50% do capital da empresa, com a garantia do seu controlo estratégico e a promessa de que a operação seria concretizada cerca de dois meses depois.
A Associação Peço a Palavra (APP), na altura, emitiu um comunicado em que, embora discordando da solução encontrada, se congratulava pela recuperação do controlo da empresa por parte do Estado, esperando que o Governo soubesse ser firme na defesa do interesse nacional na futura administração.
Poucos dias depois desta decisão política, a ANAC veio dar-nos razão, confirmando ser inequívoco que o controlo efectivo da empresa não pertencia a um cidadão europeu, mas ao cidadão americano/brasileiro David Neeleman, dono da empresa brasileira AZUL. Neeleman, aliás, sentiu-se na necessidade de “adquirir”, entretanto, também a nacionalidade cipriota, para tentar limpar a ilegalidade cometida na “compra” da TAP, e que deveria, por si só, ter permitido a António Costa reverter o negócio.
A verdade é que o Governo não só não o fez, como permitiu que, entretanto, Neeleman aproveitasse a passividade do ministro do Planeamento e Infraestruturas, Pedro Marques — mas também da ANAC, do Tribunal de Contas e mesmo de Humberto Pedrosa —, para fazer o que quis com a TAP, em operações que apenas visaram salvar a sua empresa brasileira à custa dos interesses da nossa companhia nacional. É altura, por isso, de relembrarmos as gravíssimas responsabilidades dos governos Coelho/Portas, mas também do actual executivo, na perigosa situação em que deixaram a nossa companhia aérea nacional.
Vejamos, primeiro, as responsabilidades dos governos Coelho/Portas. O contrato de “doação” de 61% de capital da TAP à Atlantic Gateway, com a promessa de venda até 95%, pelo valor simbólico de €10 milhões, tinha duas contrapartidas: a obrigação de entradas de capital de €270 milhões e a assunção da responsabilidade da dívida total da empresa, de €775 milhões. Ora, a Atlantic Gateway não cumpriu nenhuma dessas premissas:
1. A entrada de €270 milhões nunca se concretizou. O que existiu foi um alegado adiantamento no valor de €120 milhões, que permitiu ao governo anterior argumentar que estavam reunidas as condições para fechar o negócio.
2. A justificação dada para a urgência na venda da empresa foi a de que não havia tesouraria para pagar ordenados até ao final de 2016. Ora, pelo balanço da empresa a essa data, verifica-se que os €120 milhões sempre estiveram disponíveis na tesouraria até 31.12.16, confirmando-se, assim, que, ao contrário do alarme propagado pelos governos Coelho/Portas, sempre existiu dinheiro para pagar ordenados.
Perante estas evidências, o que fez até agora o ministro? Deixou que o recém-naturalizado cidadão cipriota, com um passado conhecido, mandasse na TAP, com a conivência de Fernando Pinto (até quando?), tomando decisões que apenas favorecem os seus interesses e que põem em risco a sobrevivência da nossa companhia aérea. Senão vejamos:
1. Logo após a conclusão da “venda”, e antes de este Governo ter negociado a recuperação da maioria do capital, foram alteradas rotas e destinos e redefinida a frota de aviões, o que viola o previsto no Caderno de Encargos. Essas alterações estratégicas, como veremos adiante, visaram unicamente salvar a AZUL da falência.
2. Nenhuma das entidades envolvidas na recapitalização da TAP foram as que constavam na proposta da Atlantic Gateway, na qual se previa que as obrigações a emitir seriam subscritas pelo fundo Cerebrum e pelo Banco de Desenvolvimento do Brasil. Efectivamente, vieram a ser subscritas pela AZUL e pela HAN, a empresa chinesa que, entretanto, adquiriu 24% da AZUL. Em todas as alterações, os níveis de credibilidade da Atlantic Gateway (“creditworthiness”) são claramente inferiores ao previsto.
Terá sido esta circunstância, depois da evidência de que era ele e não Pedrosa o novo dono da TAP, que levou Neeleman a aceitar a reversão parcial exigida por António Costa, de forma a obter o “creditworthiness” do Estado português? Ou terá sido porque o Governo se comprometeu a deixar-lhe as mãos livres para fazer os seus negócios à custa da TAP?
Custa-nos a acreditar nesta segunda hipótese, mas a verdade é que, já depois do anúncio do Governo, foram celebrados, que se saiba e até ao momento, os seguintes contratos com “partes relacionadas” com o Sr. Neeleman, através de ajuste directo:
a) Cedência do contrato de aquisição dos A350, que resultou de negociações anteriores à aquisição das acções por parte de Neeleman e que consta do Relatório e Contas. Acresce que, nas contas da TAP, foi provisionada uma comissão de intermediação, a pagar, de cinco milhões para este “negócio”;
b) Falso contrato de code-share de voos entre o Brasil e Lisboa, que apenas beneficia a AZUL, já que esta não voava para a Europa, enquanto a TAP voava para o Brasil;
c) Aluguer pela AZUL de ATR (pequenos aviões movidos a hélice) para fazer a ponte aérea entre o Porto e Lisboa, que estavam parados e sem manutenção no Brasil, com a totalidade do risco da sua rentabilidade na AZUL, que assim o transferiu para a TAP, a preços claramente acima do mercado concorrencial;
d) Aluguer pela AZUL de aviões A330, que necessitavam de requalificações e reparações significativas, que estão a ser suportadas pela TAP e não irão ser recuperadas durante o período de aluguer;
e) Vendas de lojas francas à Vinci com condições, no mínimo, bastante nebulosas;
f) Pagamentos injustificados ao sócio (Pasogal) da TAP na Groundforce.
Não é admissível que nenhum órgão de supervisão e controlo — ROC da sociedade, ROC da dívida, conselho fiscal, conselho geral de supervisão, Comissão de Acompanhamento, ROC da Parpública, etc. — se tenha pronunciado sobre tudo isto, enquanto, ao mesmo tempo, os honorários com serviços de auditoria aumentaram exponencialmente, de €100 mil para €250 mil, tal como se evidencia no Relatório e Contas da empresa para 2016.
É impossível que o ministro não soubesse destas operações, nem dos efeitos negativos que elas teriam para a empresa, para não falar da promiscuidade das relações entre a TAP, Neeleman e a consultora Seabury ou da venda de 5% das acções aos trabalhadores, quando tinham direito a adquirir 10% do capital da empresa.
Resta a questão das nomeações dos administradores, que, sem poderes executivos, não terão uma palavra a dizer nos planos estratégicos da TAP nem direito de voto nas decisões mais importantes. Acresce que o único com experiência no sector da aviação é António Menezes, ex-CEO da companhia aérea açoriana SATA — experiência que não o torna especialmente recomendável: conduziu ao descalabro financeiro a mais antiga companhia aérea de Portugal, deixando-a com milhões de euros de prejuízo e à beira da falência.
Quanto a Diogo Lacerda, lembremos apenas que participou nas nebulosas negociações que levaram à ruinosa compra da VEM pela TAP. Posteriormente, Diogo Lacerda foi escolhido para liderar as negociações com a Atlantic Gateway, não tendo qualquer experiência na gestão de uma companhia aérea.
Perante a provada ilegalidade da “venda” levada a cabo pelos governos Coelho/Portas, impunha-se a reversão do negócio da privatização da TAP, para que não viesse a correr o risco de ser desmantelada por um cidadão estrangeiro, que tem posto a gestão da nossa companhia aérea ao serviço exclusivo dos seus interesses.
Não foi essa a opção do Governo. Mas, pelos factos expostos, consideramos que a solução encontrada não cumpre o que se propôs e expõe a TAP a uma situação de alto risco, uma vez que o Estado português, apesar de manter a responsabilidade da dívida, tem apenas administradores não executivos, lucros irrisórios e nenhuma intervenção na estratégia da empresa. Associação Peço a Palavra