O alter-ego feminino de Julião Sarmento saiu à rua
Self-portrait fountain (Fat chance Bruce Nauman), a nova escultura do autor inaugurada esta segunda-feira no jardim das Águas do Porto, vem engrossar o acervo de arte pública da cidade.
Do lado sul do jardim das Águas do Porto vê-se o rio Douro e ouvem-se os comboios. A partir desta segunda-feira, é possível também admirar aí uma nova peça de arte pública, com que a autarquia dá sequência ao projecto do antigo vereador da Cultura, Paulo Cunha e Silva (1962-2015), de criar “um museu a céu aberto” na cidade.
A obra em causa é uma escultura em bronze sobre um plinto de betão dentro de um pequeno lago, a que Julião Sarmento (n. Lisboa, 1948) chamou Self-portrait fountain (Fat chance Bruce Nauman): uma jovem mulher de tronco nu, braços abertos e equilíbrio precário sopra um jacto de água para um espelho de água… O próprio artista explicou no local como esta sua criação é devedora do norte-americano Bruce Nauman (n. 1941), “uma figura absolutamente seminal da arte” do último meio século, que Sarmento confessou ser o seu “pai espiritual”.
Numa das suas obras de fotografia, Self-portrait fountain (1966), pertencente à colecção do Whitney Museum of American Art, em Nova Iorque, Nauman figura-se a si próprio soprando um fio de água e representando, de forma irónica, o papel do artista – porque “o verdadeiro artista é uma espantosa fonte luminosa”, escreveu, evocando também a peça com que Marcel Duchamp subverteu, em 1917, o significado e o estatuto da arte, transformando um urinol público numa “fonte”.
Julião Sarmento transformou a fotografia de Nauman num objecto tridimensional, e adaptou-o ao contexto, e ao cenário, de um jardim romântico como o da empresa municipal Águas do Porto, no Bonfim. “Self-portrait fountain (Fat chance Bruce Nauman) continua a ser um auto-retrato; é o meu alter-ego no feminino”, explicou o artista, dizendo que esta foi também a sua contribuição para a revitalização de um lugar ligado ao mundo e ao tema da água.
Esta é a segunda peça de arte pública do artista português no país, depois da inauguração, no ano passado, na marginal de Matosinhos, da peça Dois gémeos, dedicada aos Irmãos Passos. “O Norte gosta mais de mim do que o Sul, e não me importo nada com isso”, comentou Sarmento, que no entanto assinou recentemente um protocolo com a Câmara de Lisboa para a instalação da sua colecção de arte no Pavilhão Azul da Avenida da Índia.
Jardim reabre em Outubro
Além de uma obra nova no já riquíssimo património de arte pública da cidade do Porto, a “fonte” de Sarmento é uma peça fundamental para a reabilitação deste parque e jardim com cerca de três hectares, que – explicou Frederico Fernandes, o presidente da empresa municipal – deverá reabrir ao público no próximo mês de Outubro, seguindo um projecto de renovação congeminado pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Com grande parte dos caminhos e canteiros já recuperados, o jardim das Águas do Porto está também pontuado por tanques, padrões e outras estruturas patrimoniais da cidade, como a fonte da arca de água de Santo Isidro.
“Era um jardim abandonado que estava à mão de semear, numa freguesia com poucos espaços verdes de fruição, e que a partir do próximo Outono vai enriquecer o património da cidade”, explicou aos jornalistas Rui Moreira, após a inauguração da fonte de Julião Sarmento. O presidente da autarquia identificou também a nova peça como a sexta do programa anunciado em 2015 por Paulo Cunha e Silva com a instalação de um painel de Fernando Lanhas no túnel da Ribeira – a que se seguiram peças de João Louro, Dalila Gonçalves, Rui Chafes e também Alberto Carneiro, cuja morte recente fez adiar para o final deste ano a instalação de Três metáforas de árvore para uma árvore verdadeira no Largo de São Domingos.
A Câmara do Porto utilizou também a apresentação da fonte de Julião Sarmento como pretexto para o lançamento de um Mapa de Arte Pública que identifica mais de duas centenas de obras inscritas no tecido da cidade desde a escultura do guerreiro O Porto (João Allão, 1818), inicialmente colocada no cimo dos antigos paços do concelho, e que hoje podemos ver num dos passeios da Praça da Liberdade. O mapa, já disponível em versão impressa, mas que futuramente ficará também acessível em plataforma digital, faz uma selecção de meia centena dessas obras, distribuídas por cinco rotas: Histórica, da Água, das Letras, das Belas Artes e da Arte Contemporânea.
“A nossa arte pública é uma das expressões mais intensas das gentes portuenses, e era importante cartografá-la e torná-la acessível tanto aos moradores como aos visitantes”, acredita Rui Moreira.