Simplesmente inexplicável
Estamos ainda à espera dos resultados dos inquéritos ao que aconteceu em Pedrógão e em Tancos, tal como se aguardam explicações sobre a desorientação e disfuncionalidade em vários ministérios – não apenas no MAI ou na Defesa, mas também na Agricultura, na Justiça, na Saúde ou na Educação, por exemplo – mas, em boa verdade, o que se passou é simplesmente inexplicável. Tal como parece inexplicável que o primeiro-ministro, procurando abrandar a pressão que sobre ele se abateu depois do mais mortífero dos incêndios das últimas décadas e do mais grave roubo de armas num paiol do Exército de que há memória neste país, tenha decidido não interromper a sua programada semana de férias em Espanha. Percebe-se mas não se explica – ou quanto mais se percebe menos explicável é.
A prioridade estratégica do Governo era – e é, por motivos bem compreensíveis, aliás – manter tanto quanto possível o equilíbrio entre as exigências orçamentais impostas por Bruxelas e a reversão das medidas mais gravosas, no plano social e económico, herdadas do período da troika – o que constitui, de resto, o penhor da aliança parlamentar do PS com os partidos à sua esquerda. O saldo dessa estratégia, por mais que isso provoque a crispação tantas vezes histérica de uma direita desnorteada, traduz-se num cenário de saída da crise que vem devolvendo a confiança ao país e explica a popularidade conquistada pelo Governo.
Mas este horizonte auspicioso foi subitamente ensombrado – mais exactamente, assombrado – pela tragédia de Pedrógão e pelo escândalo de Tancos. Refém da sua consumada habilidade e do seu incurável optimismo, o primeiro-ministro deixou-se apanhar em falso pelo reverso do Portugal positivo em que apostara e pela revelação incandescente de outro Portugal que aliás nunca deixara de existir mas parecia oculto pela embriaguez do sucesso.
Foi assim que emergiu de novo o psicodrama político de um país esquizofrénico, dividido entre a face brilhante das performances económicas e a face sombria dos abandonos, dos esquecimentos, das faltas de previsão e coordenação da administração pública, patentes no interior do mesmo ministério – é o caso flagrante do MAI – ou afectando transversalmente o corpo governativo. Se parecia haver uma estratégia sólida, sustentada ou pelo menos hábil na frente económica, ficaram expostos cruelmente à luz do dia os crónicos desacertos e vazios estratégicos no que se refere à segurança das pessoas e bens ou ao desenvolvimento do Portugal profundo.
Foi preciso ter acontecido Pedrógão para redescobrirmos o que, afinal, estávamos fartos de saber: que não existe uma política florestal num país onde a floresta foi ocupando um espaço cada vez mais extenso – e vulnerável –, enquanto crescia velozmente o despovoamento do interior, e que os serviços de prevenção e combate aos incêndios viviam em estado de improviso permanente ou na dependência de equipamentos precários ou inúteis nos momentos mais críticos. E foi preciso ter acontecido Tancos para sermos confrontados com algo que não deveria surpreender-nos: o estado de deliquescência que corrói parte das Forças Armadas, mas levado, neste caso, ao nível extremo do anedótico (com as falhas de segurança e vigilância mais confrangedoras e humilhantes para a dignidade das patentes militares).
Se pensarmos ainda na desautorização da ministra da Justiça com as anunciadas – e impensáveis – greves dos magistrados, nos dramáticos buracos na rede da Saúde ou nos improvisos apressados nos programas educativos, ficamos com a imagem de um Governo cujo epicentro se reduz cada vez mais à área das Finanças (de que tudo depende, sob a obsessiva tutela do primeiro-ministro). Para além dos inquéritos e das respostas, dos apuramentos «doa a quem doer», o que está à vista de todos é já simplesmente inexplicável.