G20 ou G0
1. “Tem alguma coisa em casa Made in Russia?”. A pergunta, fez-ma Chris Patten, o último governador de Hong-Kong e um dos mais brilhantes políticos britânicos, e nunca mais me saiu da memória. Foi durante uma entrevista há já um bom par de anos sobre as grandes tendências do poder mundial. Não tenho nada em casa Made in Russia e compro imensas coisas Made in China. A ideia de Patten sobre o poder real da Rússia de Putin tem, aliás, um longo historial. Uma das razões – se não a principal – pelas quais o império soviético implodiu foi, precisamente, esta. Gorbatchev percebeu uma coisa muito simples: que, para manter o equilíbrio de poder militar com os Estados Unidos, a Rússia precisava de uma economia capaz de ombrear com a economia americana. Nos anos 1980, isso já era visivelmente impossível. O poderio militar soviético absorvia uma parte enorme do PIB à custa da pobreza generalizada. Os Estados Unidos de Reagan, não apenas conseguiram regressar ao seu enorme vigor económico, como anunciaram (um pouco exageradamente) a nova “guerra das estrelas” (mísseis antimísseis), que anularia qualquer veleidade soviética. Era impossível enfrentar um país ao qual bastavam 4% do PIB para financiar um poder militar tecnologicamente imbatível. Conhecemos a história do que se seguiu com o fim da Guerra Fria e a convicção (ingénua?) de que o destino da Rússia seria aproximar-se do Ocidente. O poder de Putin assentou, desde a primeira hora, na devolução à Rússia do seu estatuto de “superpotência”, capaz de desafiar a América, pondo fim à “humilhação” dos primeiros anos do pós-Guerra Fria. Levou sua nova visão da ordem internacional até ao fim, testando-a na Georgia, em 2008, à qual o Ocidente ligou menos do que devia, e outra vez na Ucrânia, infringindo todas as leis internacionais do pós-guerra. Mantém uma ameaça velada aos países da Europa central e de leste, insistindo que fazem parte da sua esfera de influência e pondo à prova a vontade da NATO de os defender. Vale a pena lembrar tudo isto, para saber exactamente onde estamos.
2. Ontem, o encontro entre Trump e Putin, que durou mais de duas horas e que contou com a presença dos respectivos chefes da diplomacia, voltou a dar ao Presidente russo aquilo que ele quer mais do que tudo: um estatuto de primeiro plano na liderança do mundo. Mas, tal como Gorbatchev, Putin lidera uma potência com pés de barro, mesmo que com um arsenal nuclear ainda invejável (ainda que inutilizável, como aconteceu na Guerra Fria). O problema é o mesmo: a economia. A Rússia é a 12.ª potência económica, ultrapassada até pelo Brasil com idêntica população. A economia vive do sector energético. A demografia (com índices de mortalidade próprios dos países mais atrasados) é outro calcanhar de Aquiles. Com uma agravante. A Rússia continua isolada internacionalmente por causa da Ucrânia - contam-se pelos dedos de uma mão os países que reconheceram a ocupação da Crimeia. Patten tinha razão.
A China é o oposto. A liderança chinesa também está pronta a jogar com o nacionalismo anti-ocidental, mas sabe que, enquanto os chineses tiverem a expectativa de que a sua vida continuará a melhorar, isso chega para legitimar o regime. Entretanto, utiliza o dinheiro que não lhe falta para investir no mundo inteiro, conquistando simpatia e influência. Em África, na América Latina, na Ásia e na Europa, onde beneficiou da crise para fornecer aos países mais debilitados o investimento de que precisam como pão para a boca. Como Obama viu claramente, a China é o verdadeiro desafio estratégico ao poderio norte-americano, mesmo que ainda longe de conseguir alcançá-lo. Já passou a fase do peacefull rising para uma atitude mais agressiva, sobretudo no Mar do Sul da China, onde testa o poder americano. Está em ascensão ao contrário da Rússia e, por isso, a ordem do pós-guerra serve-lhe bem, desde que preserve o princípio sagrado da soberania.
3. Em Hamburgo, Putin conseguiu o que queria. Encontrou-se com Donald Trump durante mais de duas horas, enquanto Angela Merkel e os seus outros parceiros do G20 discutiam as alterações climáticas e o futuro do comércio livre. Provou ser indispensável para a resolução de vários problemas internacionais – na Ucrânia como na Síria. Para Trump , as coisas também correram bem. Tinha de ultrapassar as suspeitas de interferência da Rússia nas eleições americanas para poder retomar uma relação que se fartou de gabar durante a campanha. Vê o mundo, no essencial, como Putin: uma arena em que quem vence são os mais fortes, sem os constrangimentos das regras e das suas instituições multilaterais. A diferença é que está condicionado pela solidez da democracia americana, enquanto Putin pode dirigir a Rússia como quiser, calando a oposição conforme lhe é conveniente. Nas palavras de Rex Tillerson, Trump teve uma intervenção “muito robusta” sobre as interferências russas nas eleições. Nas do seu homólogo russo, Sergei Lavrov, Putin garantiu ao Presidente que não houve interferência nenhuma. Ou seja, ficou tudo na mesma, mas Trump salvou a face. Disse a Putin que tinha de fazer alguma coisa na Ucrânia para mostrar boa-fé (Moscovo precisa do levantamento das sanções) e deu um sinal de que era possível melhorar a situação na Síria. As promessas de Putin não são habitualmente para levar a sério. Como diz a chanceler, “ele vive noutro mundo”. O tempo dirá quem perdeu e quem ganhou. Mas, desta vez, Trump não fugiu à estratégia delineada na Casa Branca para a sua segunda viagem, destinada a melhorar a impressão deixada na primeira. Foi à Polónia apresentar a sua ideia de Ocidente, aliás bem próxima da do governo nacionalista de Varsóvia, em jeito de cruzada cristã. Mencionou pela primeira vez o Artigo 5.º da NATO. Em Washington, os colunistas mais conservadores, que ainda desconfiavam dele, classificaram o seu discurso de reaganeano. Tem de comum com os seus homólogos de Varsóvia e de Moscovo não gostar da Alemanha e, ainda menos, da chanceler, nem conseguir entender para o que vale a União Europeia.
4. E Merkel? A chanceler não teve a cimeira que desejava. No primeiro dia, Trump e Putin roubaram-lhe o show. Um punhado de contestatários violentos, consegui pôr as ruas de Hamburgo em estado de sítio, sobrepondo-se às grandes manifestações pacíficas contra a globalização. Escolheu Hamburgo (onde nasceu) para simbolizar os benefícios da abertura ao mundo. Dá-se bem com as potências emergentes, que gostam dela e, ainda mais, da sua indústria e do seu investimento. Como ela própria disse, a globalização que defende tem de ser “win-win”. Para Trump (e para Putin) o mundo é de “winners and loosers”.
Foi entronada como a líder do mundo livre, quando Trump substituiu Obama. É impossível. Não tem os meios para o fazer, mesmo que defenda os valores universais do Ocidente com vigor e sem medo de ofender ninguém. Falta-lhe a força económica num mundo de gigantes. Não tem o poder militar (com o qual a Alemanha ainda se relaciona mal) para dissuadir os infractores da ordem internacional. Com a França e com a Europa será melhor, mas ainda não estamos lá. O problema é que os EUA continuam a ser a única superpotência mundial determinante para a ordem ou a desordem do mundo. Emmanuel Macron percebe isso bastante melhor do que ela, ou não fosse o Presidente de um país que, como a América, se vê (às vezes) como o centro de onde irradia a civilização. As imagens de Hamburgo mostraram-no em grandes conversas com Trump. Apoiou a chanceler em tudo (aliás, como os outros europeus) mas não abdica de restaurar a capacidade da diplomacia francesa. Mesmo assim, o comunicado final dá-lhe uma vitória: conseguiu manter os 19 fiéis ao Acordo Paris, deixando Trump isolado. Vai ser preciso ler com atenção o comunicado final para saber se o G20 continua a ter pés para andar como a coisa mais parecida com um governo mundial. Ou então, Hamburgo acabou por ser a imagem do G0, como referiu Ian Bremmer, onde apenas prevalece a desordem.