A Marcha da Justiça avisou Erdogan de que a Turquia não aceita tudo

Vinte cinco dias depois, cerca de um milhão de pessoas juntaram-se em Istambul para condenar o processo político na Turquia, cada vez mais centrado no autoritarismo do Presidente.

Kemal Kiliçdaroglu, o líder do Partido Partido Republicano do Povo, percorreu sozinho os últimos quilómetros
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Kemal Kiliçdaroglu, o líder do Partido Partido Republicano do Povo, percorreu sozinho os últimos quilómetros Osman Orsal/Reuters
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Cerca de um milhão de pessoas juntaram-se em Istambul Umit Bektas/Reuters
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15 mil polícias e miulitares foram destacados para o centro de Istambul TOLGA BOZOGLU/EPA
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Justiça foi a palavra de ordem ERDEM SAHIN/Epa
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O dia 9 de Julho é "o primeiro passo, o renascimento" da Turquia, disse este domingo Kemal Kiliçdaroglu, o líder do Partido Republicano do Povo (oposição, secularista), na grande manifestação que encerrou em Istambul a Marcha da Justiça. Durou 25 dias e 425 quilómetros. E se no dia em que partiu de Ancara não tinha mais do que dezenas de pessoas, cinco dias depois já tinha mil, dez dias depois já tinha dezenas de milhares e em Istambul chegou ao milhão.

"Marchámos contra a ausência de justiça", disse Kiliçdaroglu nas parcas declarações que fez, citado pelo jornal Hurriyet. Nos últimos quilómetros, caminhou sozinho — estava pronto para enfrentar o que de lá viesse, a polícia ou uma ordem de prisão. Centenas de apoiantes contrariaram-no, deixaram-no sozinho no meio da estrada mas caminharam ao seu lado, para o proteger. Mas a violência não aconteceu, apesar do cordão polícial à sua volta e dos 15 mil homens fardados destacados para a Maltepe, onde tudo culminou.

Em Maltepe, no centro de Istambul, o ambiente era de alegria pelo sucesso deste despertar depois de um ano de repressão. Após o golpe falhado, 50 mil pessoas foram detidas, cinco mil continuam presas, 150 mil (professores, juristas, jornalistas, militares, funcionários públicos) foram suspensos ou despedidos, todos acusados de porem em perigo a segurança do país e de estarem associados a Fethullah Gülen, o teólogo e pedagogo turco que de aliado de Erdogan passou a seu principal inimigo (vive nos EUA). Num só ano, o Estado assumiu o controlo de quase toda a comunicação social, confiscou bens de pessoas e empresas no valor de milhares de milhões de euros e condenou a penas pesadas pessoas de todas as actividades.

A razão inicial da Marcha da Justiça foi a prisão de Enis Berberoglu, jornalista e deputado do Partido Republicano do Povo. Foi condenado a 25 anos de prisão por espionagem — passou ao jornal Cumhurriyet um vídeo mostrando militares turcos a entregarem armas na Síria.

Berberoglu foi o primeiro deputado do CHP a ser preso na grande purga que começou após o 15 de Julho — a última detida foi Idil Eser, directora da Amnistia Internacional, levada na quinta-feira; o presidente da organização de direitos humanos, Taner Kiliç, está detido desde Junho. Mas a justificação mais profunda do protesto é esta "ausência de justiça", segundo disse Kiliçdaroglu, e a necessidade de os turcos darem uma prova de vida, de resistência, perante um poder cada vez mais autoritário.

Kiliçdaroglu, que os analistas dizem ter sido até aqui um líder da oposição cinzento — que limitara a sua luta política às paredes do Parlamento —, pedira por isso uma marcha de unidade, de todos os turcos, sem símbolos partidários. Os que marcharam e se juntaram em Maltepe, no coração de Istambul, uma praça forte do islamista Partido da Justiça e do Desenvolvimento de Erdogan (que ali nasceu), levaram bandeiras da Turquia, bandeiras com a cara de Mustafa Kemal Atatürk (o fundador da Turquia moderna e secular), e bandeiras só com a palavra Adalet (justiça).

Além de querer acordar os turcos, Kiliçdaroglu quis dar a Erdogan um sinal de que não tem o país inteiro a seus pés — como já ficara provado no resultado do referendo de Abril que aprovou, por curta margem, a mudança na Constituição que dá plenos poderes ao Presidente. A proximidade do 15 de Julho foi intencional — será o dia em que o Presidente turco quererá passar a mensagem de que os turcos derrotaram o golpe porque todos os turcos estão do seu lado.

Quando a marcha começou, Erdogan criticou Kilicdaroglu dizendo que a justiça deve ser feita no Parlamento, não na rua. Fez uma ligação directa entre os organizadores do protesto e os golpistas e ameaçou punir responsáveis. Kiliçdaroglu, disse, estava a encenar protestos para proteger terroristas e os que apoiam o terrorismo" e que a sua formação deixara de ser um partido "para ter uma dimensão diferente". Kiliçdaroglu respondeu que estas eram "palavras dignas de um ditador".

Erdogan estava perante um dilema, diz a análise de Howard Eissenstat e Steven A. Cook, citada pela France 24. Podia "travar a marcha, arriscando a violência, ou ver a procissão aumentar". Fosse o que fosse que decidisse, o resultado seria sempre o mesmo, sublinham os analistas: a Marcha da Justiça, "deixa claro que [Erdogan] está mais frágil do que parece e que a Turquia está a tornar-se menos — e não mais — estável debaixo da sua liderança autoritária".

Erdogan, no poder há 15 anos, queria travar a marcha, escrevem, mas também quer continuar a beneficiar da "ilusão de que a Turquia é uma democracia funcional". "Banir a marcha e deter Kiliçdaroglu e outros líderes minaria esta pretensão", afirmam. "Os esforços de Kiliçdaroglu juntaram uma improvável aliança entre o seu partido, os grupos pró-curdos, os nacionalistas da linha dura" — provando que não há total tolerância para aceitar uma "ditadura evidente" e abrindo caminho a novas "contestações populares".

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