Muitas leis e muito desleixo
Em Portugal temos razoáveis leis, regulamentos e protocolos. Mas não os cumprimos.
A tragédia de Pedrógão Grande e o assalto ao paiol de Tancos fizeram-me lembrar um outro evidente exemplo da da nossa triste realidade: a morte de 25 insuficientes renais em Évora em 1993, fruto de intoxicação alumínica.
Simples de contar: dado que a máquina que servia para tratar a água utilizada no tratamento dos doentes hemodialisados entupia muito, abandonou-se o protocolo estabelecido e passou-se a fazer um bypass, inicialmente por curtos períodos e, a partir de certa altura, quase sistematicamente, pelo que o sangue dos doentes era lavado com água carregada de alumínio da rede de água de Évora. Uma rotina fatal.
Até já tinha sido aprovada a construção de um tanque para o Hospital Distrital de Évora poder passar a ter água própria para esses tratamentos mas, entretanto, morreram 25 doentes. Não houve demissões políticas, ou melhor, houve uma: o ministro do Ambiente que disse publicamente uma qualquer piada estúpida e o médico que dirigia a Unidade de Tratamento de Hemodiálise foi punido criminalmente e administrativamente.
O problema em Évora, de alguma forma como em Pedrógão Grande e em Tancos, não era essencialmente um problema político ou económico – independentemente das responsabilidades políticas e das demissões que agora venham a ocorrer ou das carências orçamentais sempre existentes – mas sim um muito mais vasto e dramático problema cultural.
Em Portugal temos razoáveis leis, regulamentos e protocolos. Mas não os cumprimos. Não vemos necessidade de reunir regularmente o SIRESP se nada acontece quando não o reunimos. Não nos sentimos obrigados a desmatar à volta das habitações se nada acontece se o não fizermos. Não nos preocupamos com a falta de videovigilância nos paióis quando, dia após dia, nada acontece. Esquecemo-nos da razão de ser das regras estabelecidas. E instalamos rotinas ... fatais.
Estou certo que ninguém terá dúvidas que, neste momento, há inúmeras rotinas perigosas em curso no nosso país, por exemplo nas prisões ou nos hospitais, em que os regulamentos ou protocolos não estão a ser cumpridos, mas em que não há azar, vai tudo correr bem como sempre correu. Até um dia, claro, em que se reúnem todos os factores necessário à eclosão da catástrofe.
Somos estruturalmente avessos à organização, ao respeito pelos protocolos e pelas regras? Pensamos, em geral, que somos mais espertos que as regras abstractas e que não vale a pena cumpri-las ? Certo é que, com excessiva habitualidade, substituímos a rotina do cumprimento pela rotina do incumprimento.
Uma das razões porque sempre fui contra as centrais nucleares em Portugal, para além dos perigos da própria energia, sempre foram os perigos dos próprios portugueses. Os portugueses numa central nuclear correriam o sério risco de virem a ser um pelotão de Homers da série Os Simpsons. É um lamentável estereótipo mas tem um persistente fundo de realidade.
Como é evidente, situações como as de Pedrógão Grande ou mesmo de Tancos, têm origem em múltiplos factores ou ingredientes, não podendo ser atribuídas a um único culpado ou a uma única razão e, sobretudo, tão genérica ou subjectiva. O grave caso de Tancos, por exemplo, terá, também, origem em cumplicidades criminosas. E, seguramente, os assaltos a paióis noutros países não terão sido tão fáceis e evidentes como no caso de Tancos em que se acumularam diversos convites ao assalto numa estrutura que supúnhamos organizada e responsável como é o Exército.
Procure-se saber quando foi a última vez que foram feitas inspecções ou acções de fiscalização aos depósitos de armamento das forças militares e militarizadas, em que termos foram efectuadas, conclusões e sua concretização e, seguramente, que a conclusão é angustiante. Procure-se saber quantas multas foram impostas no último ano a proprietários que não limpam os terrenos e veremos que são números ridículos. E desse número, quantas terão sido cobradas? Procure-se saber quantos aparelhos detectores de metais, à entrada de serviços relevantes, estão avariados no nosso país e desde quando e, provavelmente, teremos vergonha do que descobrirmos.
Mais do que novas leis e regulamentos, precisamos de investir na prevenção: mais fiscalização e maior exigência na prestação de contas em todos os sectores da vida nacional.