Às armas, doutor Costa
Se Pedrógão foi mau demais, um roubo de armas de guerra num tempo de ameaças de ataques terroristas é politicamente insustentável.
É de elementar bom senso pegar no desastre de Pedrógão, juntar-lhe a vergonha de Tancos, meter tudo no mesmo saco e dizer que assistimos ao cúmulo do desgoverno. Quando se proclama com cada vez maior alarde que acabou o estado de graça de António Costa, está-se precisamente a apontar para um Governo incapaz de garantir um mínimo de eficácia na protecção civil e o mais leve assomo de segurança nos paióis do Exército. Está-se a contar uma anedota mais próxima de uma república das bananas do que de um Estado da União Europeia no século XXI. Meter Pedrógão e Tancos no mesmo saco pode não ser justo, pode banalizar o drama de 64 pessoas que morreram ou tirar conteúdo a um roubo que se amplia nas condições de insegurança na Europa. Mas é um exercício obrigatório. Porque o caso de Tancos funciona como o vento no desastre de Pedrógão: amplifica a sensação de desatino. O que fica nesta frente de fogo é a discussão sobre a credibilidade do Estado e a competência de quem o governa.
Entre os dois desastres há detalhes que nos dão a sensação que o desnorte vai em crescendo. Em Pedrógão, a única certeza que podemos ter é que pagámos um preço demasiado elevado (com vidas humanas) por muitas décadas de laxismo e negligência. A devastação do incêndio que arrasou quase 80% da floresta da região explica-se pela balda delinquente de ministros e de autarcas expeditos em pedir e fazer leis, mas relapsos e preguiçosos em zelar pelo seu cumprimento. Com ou sem downburst, o barril de pólvora estava ali, à vista de todos, à espera do primeiro capricho do clima ou da primeira falha humana. Houve erros na protecção civil, esse sistema de comunicações com nome de larápio (SIRESP) claudicou quando não podia claudicar, houve mudanças de cargos na protecção civil que tresandam a pequena política e é justo que com tantas falhas o país exija responsabilidades políticas e peça a cabeça da ministra. Mas, ainda assim, o que aconteceu nas fragas do pinhal é de um domínio muito mais providencial do que a vergonha personalizada de Tancos.
Em Tancos, houve um colapso do dever e uma ruína da exigência militar que não se resolvem com entregas de espadas no Palácio de Belém. Um Exército que se deixa roubar assim perde num ápice qualquer aura de credibilidade. Deixa de ser uma entidade na qual os cidadãos confiam para se tornar numa caricatura ameaçadora. Mais do que uma vergonha, o que está em causa é uma miséria. Quando o chefe do Estado-Maior do Exército, Rovisco Duarte, diz que “estes roubos podem acontecer em qualquer Exército, em qualquer país, desde que haja intenções, vontades e capacidades”, faz-nos o favor de avisar que estamos sós e indefesos. Porque “intenções, vontades e capacidades” para roubar armas de guerra sempre houve e haverá.
Se em Pedrógão é decente exigir consequências políticas pelas falhas do SIRESP ou da protecção civil, em Tancos é obrigatório ser mais enérgico e intolerante no pedido de responsabilidades. Os cinco comandantes demitidos por tempo determinado (uma originalidade) podem não ter culpa directa no que aconteceu, mas têm responsabilidades por não o terem evitado. O chefe do Estado-Maior pode tentar embrulhar a gravidade da história, mas, perante uma derrota assim tão copiosa, um comandante só pode oferecer o seu cargo como expiação. O ministro da Defesa Nacional pode ser (e é) uma vítima do assalto, pode ter como crédito um mandato inteligente e eficaz, com boas decisões em casos bicudos como o dos comandos ou o da Academia Militar, mas se assume a “responsabilidade política” do roubo, tem de o fazer por inteiro. Um assunto desta gravidade só se mitiga com decisões igualmente graves. Há momentos em que é preciso dar o peito às balas. A demissão é, por isso, o mínimo que deles se espera.
Até porque, e uma vez mais ao contrário de Pedrógão, não é aceitável que nos venham dizer que não havia videovigilância, ou que havia um plano para suprir essa lacuna. Que se saiba, quando Tancos fez o seu “milagre” e preparou em tempo recorde as divisões que foram para a Flandres na Grande Guerra, ainda não havia câmaras de vídeo. E não há notícia de saques de armas como a da semana passada. Porque pior do que não haver videovigilância é sabermos que os chefes sabiam dessa falha e ainda assim deixaram o perímetro dos paióis sem guarda. É sabermos que os assaltantes tiveram todo o tempo do mundo para cortar redes e arrombar portas, escolher as armas e carregá-las, sem que nada os incomodasse. É sabermos que, depois de as autoridades notarem o roubo, não se fecharam fronteiras nem se lançaram medidas de emergência para recuperar as armas.
Pelo contrário, o que vimos foi uma tentativa pífia de sacudir água do capote. Quando o chefe do Estado Maior dizia que não lhe “compete avaliar por que é que a videovigilância estava avariada há cerca de dois anos” e o ministro admitia que, “por muito estranho que possa parecer”, ele “não sabe se há falta de vigilância em Tancos”, o que fica no ar é mais um jogo de passa-culpas. O Exército, corporativo como convém, há-de dizer que a culpa é dos políticos que não lhes deram câmaras de filmar, quando o seu dever era garantir sentinelas para suprir a sua falta. E o Governo há-de afirmar que não lhe cabe fazer ordens de serviço nem indicar o cabo A ou o sargento B para estar de plantão.
Tal como em Pedrógão, Tancos tornar-se-á um campo de ensaios para a eterna tendência de justificar falhas com buracos no Orçamento. Tal como Pedrógão, Tancos é o exemplo que nos envergonha lá fora por vivermos sob a égide de um Estado onde a complacência é norma e o desleixo tradição. Tal como Pedrógão, Tancos é o lugar onde se percebe a distância entre o centro do poder político, civil ou militar e as estruturas intermédias onde as funções do Estado se diluem na inépcia, no comodismo e no concubinato político. Se Pedrógão foi mau demais, um roubo de armas de guerra num tempo de ameaças de ataques terroristas é politicamente insustentável. O Governo vai ter de desatar o nó, legítimo e inexorável, que o começa a apertar.
Talvez seja tentador para António Costa esperar que o calor estival crie amnésia e faça regressar as conquistas do défice e da economia ao lugar onde por estes dias há mortos em incêndios e paióis assaltados. Talvez continue a confiar na sorte. Talvez esteja à espera que o Presidente-Rei o salve com o seu adorável ombro amigo. Mas, há manchas indeléveis que nunca se apagam. Com o fogo e as armas a servirem de cenário, António Costa tem pela frente uma desafio que lhe impõe uma opção: ou é um primeiro-ministro exigente e intolerante com falhas assim tão colossais, ou arrisca-se a deixar colar à sua pele a imagem de um líder apenas porreirinho. Bom para festejos, ideal para angariar posições conjuntas com a esquerda, mas incapaz de um sobressalto quando o país arde ou lhe roubam a dignidade. Tudo o que Portugal não precisa é de um Américo Thomaz a posteriori. Às armas, doutor Costa.