Software do fisco só teve “apagão” nas declarações dos offshores
A tecnologia também era usada para tratar taxas liberatórias e valores mobiliários, mas aí não teve falhas. Em 2014, a IGF já contabilizava fluxos offshores muito superiores aos valores polémicos. Agora, omitiu a diferença.
A solução tecnológica usada pelo fisco nos últimos anos para registar as transferências para offshores, onde se verificaram as anomalias que deixaram de fora do sistema central fluxos de 10.000 milhões de euros, também era utilizada para processar outras declarações, como retenções de taxas liberatórias. Mas as anomalias só aconteceram no registo do dinheiro enviado para paraísos fiscais.
Nas restantes declarações, a plataforma PowerCenter funcionou bem, sem erros, e não houve qualquer “apagão” – pelo menos, à luz dos factos que hoje se conhecem. Um mistério ao qual a Inspeção-geral de Finanças (IGF) não dá resposta na auditoria ao sistema de controlo das declarações Modelo 38.
Embora este facto seja referido pela IGF, não foi considerado relevante para esclarecer os contornos do caso. A particularidade de o erro só ter acontecido com a validação das declarações Modelo 38 enviadas pelos bancos é omitida das conclusões e da síntese do relatório. A IGF abdicou de fazer as suas próprias perícias para verificar o que se passava com a validação das outras declarações. Pelo PowerCenter passavam ainda a declaração Modelo 4 (onde é enviada informação sobre compra e venda de valores mobiliários) e a declaração Modelo 39 (sobre rendimentos e retenções a taxas liberatórias).
Com base em peritagens elaboradas pelo Instituto Superior Técnico (IST), a IGF considerou “extremamente improvável” ter existido mão humana deliberada para ocultar 10.000 milhões de euros transferidos de 2011 a 2014. Há 8000 milhões de euros de fluxos transferidos por dois grupos empresariais. Um deles estava sediado em Portugal e foi através da ramificações do grupo em sociedades localizadas fora do país que passaram grande parte dos fluxos ocultos.
A auditoria foi elogiada pelo inspector-geral Vítor Braz pela “profundidade e rigor dos procedimentos” e pela “robustez das conclusões”, mas, ao lê-la, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, notou os “aspectos relevantes” que ficaram por investigar em nome da “descoberta da verdade” e ordenou que o fisco averigúe várias matérias, nomeadamente se houve uma “marcação de transferências específicas”.
Sabe-se que erros na migração só aconteceram com os ficheiros XML das declarações Modelo 38, e não com as Modelo 4 e Modelo 39, porque foi o próprio fisco – e não a IGF – quem avançou com testes para verificar o comportamento do PowerCenter na migração desses dados. E foi com base nessas avaliações que a IGF concluiu que “não foram identificados quaisquer problemas de natureza semelhante ao verificado na declaração Modelo 38”.
Numa versão preliminar do relatório, os inspectores chegaram a recomendar que o fisco devia fazer esses testes suplementares. Mas eles já estavam feitos. A iniciativa partiu do novo responsável da área dos sistemas de informação, o subdirector-geral da Autoridade Tributária, Mário Campos, que chegou ao fisco em Março de 2016, depois de 11 anos à frente da área de arquitetura de sistemas de informação e empresarial do grupo Caixa Geral de Depósitos (CGD). Foi já com Mário Campos à frente da área informática da autoridade tributária que se descobriram os erros dos anos anteriores.
Entretanto, a solução tecnológica do PowerCenter (desenvolvida pela empresa OpenSoft e licenciada pela multinacional Informatica) deixou de ser usada para migrar a informação de obrigações acessórias dos contribuintes. Em Janeiro deste ano, foi abandonada para a declaração Modelo 39 e, em Março, para a Modelo 4. No caso das declarações das transferências para offshores, já se utilizava a tecnologia Java desde o ano passado.
Números contraditórios
A IGF deixou por esclarecer várias questões sobre este caso. Uma delas tem a ver com o facto de só existirem os ficheiros de log (com o registo da actividade da aplicação PowerCenter) em relação a seis das 20 declarações polémicas dos 10.000 milhões de euros. A política da AT é, diz a IGF, guardar os logs durante 18 meses. Há 14 declarações em relação às quais esse histórico foi apagado. Mas quando o caso dos offshores foi descoberto dentro do fisco, em Outubro de 2016, ainda não tinham passado esses 18 meses relativamente a muitas declarações. Sobre estes factos, a IGF não se indagou.
Às perguntas levantadas sobre esta questão pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, somam-se novas incongruências detectadas pelo PÚBLICO. É que a inspecção-geral tem publicado no seu site a síntese de uma auditoria aprovada em 2015 (concluída em Maio de 2014) onde assume que o valor das transferências para offshores entre 2009 e 2012 foi de 17.564 milhões de euros. Mas, quando em Abril de 2016 são publicadas as estatísticas que o próprio fisco tinha por divulgar há vários anos, os valores relativos a esse período de 2009 a 2012 eram de apenas 9447 milhões de euros. Algo aconteceu pelo meio. E isso a IGF não esclarece no relatório, omitindo as suas próprias auditorias anteriores.
Este período não é o mesmo das transferências em relação às quais se verificaram as falhas de controlo do fisco (2011 a 2014), mas como hoje se conhecem os valores das transferências ano a ano (2009 a 2015) é possível perceber estas discrepâncias. Os primeiros valores referidos pela IGF nessa altura não batem certo nem com os valores (errados) que vieram a ser conhecidos mais tarde, nem com os valores que se consideram correctos hoje.
O Ministério das Finanças sabe desta discrepância desde, pelo menos, o dia 19 de Junho, quando o PÚBLICO confrontou o Governo com os dados publicados pela IGF na auditoria homologada em 2015 (Maio de 2014). O PÚBLICO pediu um esclarecimento à inspecção-geral, através do ministério que a tutela (Finanças), mas não obteve uma justificação até ao presente.
O relatório e o despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, onde são elencadas outras dúvidas, já estão a ser analisados no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP).