Historial das transferências offshores até 9 de Outubro de 2015 foi apagado
IGF não esclareceu a eliminação dos chamados “ficheiros de log”. Problemas do fisco com transferências começaram em 2013, quando houve uma alteração de software. Mas não é certo que a causa seja essa, dizem os peritos.
As falhas do fisco no registo de 10.000 milhões de euros de transferências para contas em paraísos fiscais começaram em 2013. Esse foi um dos factos que a Inspecção-Geral de Finanças (IGF) conseguiu apurar na auditoria que esteve a realizar ao longo dos últimos meses. Mas há alguns pormenores importantes relativamente aos procedimentos internos do fisco que não aparecem esclarecidos no relatório enviado pela IGF ao Ministério das Finanças e, por este, ao Parlamento.
Uma das questões tem a ver com o facto de a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) já não ter os chamados “ficheiros de log” relativos ao tratamento da base de dados de todas as transferências para offshores comunicadas ao fisco pelos bancos antes de 9 de Outubro de 2015. Há informação a partir desta data, mas não há registos em relação a todos os dados anteriores (de 2010 a 2015), o que significa que hoje só se conhece o rastreamento informático dos eventos de seis das 20 polémicas declarações (2011 a 2014) nas quais se encontraram falhas.
A questão é complexa e para se perceber o que está em causa com os ficheiros de logs é preciso ter presente o que aconteceu nos primeiros anos. A IGF, suportando-se na avaliação de dois professores do Instituto Superior Técnico (Lisboa) que realizaram peritagens informáticas, conclui que o tratamento parcial das declarações se deveu a uma “complexa combinação de factores”, sendo, para os peritos, “extremamente improvável” ter havido mão humana deliberada para deixar de fora 10.000 milhões de euros.
Recuemos. O fisco passou a registar em 2010 as transferências para offshores, referindo-se os primeiros dados às transferências de 2009. E só em 2016 se percebeu que algumas dezenas de milhares de operações realizadas de 2011 a 2014 (de 20 declarações, de 14 bancos) não passaram para o sistema central de informação do fisco.
Avancemos no tempo. Tudo correu bem em 2010, 2011 e 2012. As falhas começaram em 2013 e há uma coincidência de datas entre uma actualização das versões da aplicação informática (Maio de 2013) e o momento em que se começa a observar uma alteração no comportamento da aplicação. Os peritos do IST encontraram aqui um “forte indício de que estes eventos estão relacionados”. Mas vincam que, por não haver logs relativos aos procedimentos realizados nos primeiros anos, “torna-se impossível um esclarecimento definitivo” da razão das falhas que se verificam a partir de 2013. “Qualquer hipótese explicativa para o funcionamento inicialmente correcto da aplicação [de 2010 a 2013] é de difícil demostração”, ressalvam os peritos.
As datas
Não havendo “ficheiros de log” anteriores a 9 de Outubro de 2015, só seria possível analisar seis das 20 declarações afectadas pelas falhas. Qual é a explicação? A inspecção de Finanças cita uma regra da AT segundo a qual os logs só são guardados internamente durante 18 meses. Depois disso, são apagados. Mas, perante esta informação, a IGF não levantou mais questões (não aparecem enunciadas no relatório), embora haja incongruências relativamente a este período de ano e meio.
Os problemas no registo das transferências foram detectados na AT em Outubro de 2016 (levando à regularização a 3 de Novembro), e nessa altura ainda não tinham passado 18 meses relativamente a várias transferências em relação às quais há falha. São 12 as situações: uma declaração submetida em Junho de 2015, 10 submetidas em Julho de 2015 e ainda uma submetida antes do dia 9 de Outubro de 2015 (a 6 de Outubro). Se deslocarmos esta mesma comparação para o momento imediatamente posterior ao da ordenação da auditoria (30 de Dezembro de 2016), assumindo como referência o mês de Janeiro de 2017 em que a AT já sabia vir a desenrolar-se a auditoria, só assim se teria “vencido” o prazo relativamente a 11 dessas 12 declarações. A IGF não se indaga sobre nenhuma destas questões no relatório, limitando-se a assumir o prazo de 18 meses referido pela AT e a apresentat um pequeno quadro com a lista das seis declarações com falhas em relação as quais há o registo dos logs (de 9 de Outubro de 2015 a 7 de Junho de 2016).
Para chegar a esta conclusão, o PÚBLICO cruzou as informações do relatório com a lista das declarações (e as respectivas datas) já enviadas ao Parlamento em Março.
Nunca é usada pela IGF qualquer a expressão que refira dados “apagados”, algo que só é assumido de forma directa pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, num despacho com data de terça-feira emitido na sequência da auditoria. Aí, são levantadas outras perguntas ainda sem resposta, com o governante que tem a tutela política do fisco a constatar mesmo que os logs “terão sido sucessivamente ignorados e foram apagados”.
E são por isso várias as dúvidas que persistem. A IGF não esclarece, por exemplo, qual foi o prazo que a AT considerou válido para fazer essa contagem dos 18 meses. Não se sabe em que momento exacto é que a AT percebeu que só tinha “ficheiros de log” relativamente a seis das 20 declarações. E não fica esclarecido se este é um procedimento automático ou manual, nem a quem compete fazer esse controlo e quem tem responsabilidade sobre ele.
As transferências
Dos cerca de 9800 milhões de euros, 78% dizem respeito a transferências efectuadas por não- residentes (empresas ou singulares) sem actividade económica directa em Portugal, e que aqui apenas tinham contas bancárias ou aqui obtiam algum rendimento sujeito a retenção na fonte.
Dos 10.000 milhões de euros, 8000 milhões estão concentrados em dois grupos económicos. Também perto de 80% das transferências – “em grande parte coincidente” com aqueles 8000 milhões, segundo o SEAF – são entidades residentes fora de Portugal, embora um daqueles dois grupos económicos mais relevantes tivesse, à data, a sede efectiva em Portugal.
Mais de 14 mil milhões de euros resultam de transferências realizadas por apenas 69 ordenantes, sempre com transferências em que o valor enviado para offshores foi superior a 30 milhões de euros. E destes 69 ordenantes, 44 eram empresas localizadas noutros países sem actividade económica directa em Portugal.
Para esta auditoria, a IGF teve o apoio de peritagens de dois professores do Instituto Superior Técnico de Lisboa (IST) e de testes realizados em Portugal e no Reino Unido pela multinacional (Informatica) que forneceu a tecnologia usada para tratar (transferir para o sistema central de informação do fisco) as declarações submetidas no Portal das Finanças, o PowerCenter.
Notícia corrigida às 12h01 de 29 de Junho: No parágrafo onde se especificam as 12 declarações com falhas em relação às quais, em Outubro de 2016, não tinha sido ultrapassado o prazo de 18 meses para os logs serem eliminados, são dez e não 11 as declarações submetidas em Julho de 2015 (12 declarações referem-se a uma declaração submetida em Junho, 10 em Julho e uma em Outubro).