Afinal havia outro (projecto para a frente ribeirinha)

E agora algo completamente diferente. A Praça do Comércio calcetada com motivos astronómicos, o Campo das Cebolas muito mais pequeno, dezenas de prédios à beira do rio. Eis um projecto da Lisboa que podia ter sido. Ainda será?

Foto
Vista, em azulejo, de como ficaria a frente ribeirinha se as ideias de Cornélio da Silva fossem para a frente DR

Era uma vez uma frente ribeirinha de Lisboa bem diferente da que conhecemos. Com mais edifícios à beira-Tejo, um calçadão, praças mais pequenas, uma marginal arborizada e uma Praça do Comércio significativamente alterada.

No baú das ideias para Lisboa estão guardados milhares de projectos de todo o tipo. Mais ou menos exóticos, fantasiosos ou exequíveis, uns quantos aguardam que ainda apareça alguém que lhes limpe o pó e os resgate ao abandono a que foram votados. Outros, a maioria, já não têm salvação possível, tornaram-se curiosidades de museu para riso e espanto dos lisboetas.

Na gaveta dos irremediavelmente condenados parece estar Building on the Edge of Tagus River: The New Lisbon Riverfront, um projecto de 2003 que Gonçalo Cornélio da Silva, arquitecto da Câmara Municipal de Lisboa, desenvolveu como tese de um mestrado de Arquitectura nos Estados Unidos. É fácil perceber porque é que o desenho urbano que ele propõe está no lote dos desesperançados: as obras que a autarquia tem promovido entre o Cais do Sodré e o Campo das Cebolas estão nos antípodas dos princípios defendidos por Cornélio da Silva.

Arraste a barra para a esquerda e para a direita para comparar a situação existente à data e a proposta:

O arquitecto sabe disso, mas não vacila. “Estou convicto de que um dia Lisboa será assim!”, diz com entusiasmo. Alguns dias depois de visitar a exposição A Lisboa Que Teria Sido – que, no Museu de Lisboa, mostrou quase 200 projectos que nunca saíram do papel –, Gonçalo Cornélio da Silva decidiu tornar público o seu próprio projecto que também não passou disso mesmo. “As cidades, muitas vezes, trocaram facilmente a sua imagem projectada ao longo dos séculos por um ganho económico de curto prazo, com uma diminuição lenta da qualidade da experiência urbana”, critica. É isso que considera ter acontecido em Lisboa nas últimas décadas. Era isso que queria corrigir.

Foto
Panorama geral do projecto de Cornélio da Silva, que previa um aumento de construção junto ao Tejo DR

A proposta de Cornélio da Silva, diz o próprio, “resulta de uma visão humanista e de uma compreensão da verdadeira função da Praça do Comércio”. É a partir desse local central que se desenvolve todo o projecto, desde o Corpo Santo a Santa Apolónia. “Somente na última metade do século XX é que se circula ao longo do Tejo, numa marginal, com uma vista sobre a cidade só habitual a quem navegava no rio”, lembra. Olhando a partir de um barco ou mesmo da Outra Banda, a dimensão da Praça do Comércio destacava-se na paisagem e impressionava o visitante. Mas “na Lisboa que conhecemos existem dois espaços urbanos em conflito” com aquele espaço, diz o arquitecto: o Campo das Cebolas e o Arsenal da Marinha, junto à Ribeira das Naus. “Não só retiram grandeza e monumentalidade, como ainda diminuem a verdadeira função da Praça do Comércio, que é a de celebrar a vida.”

Acabar com os "vazios"

Por isso, uma das propostas fulcrais era “fechar” ambas as praças com novos prédios. Na Ribeira das Naus, junto à marginal, “um edifício que prolongava as arcadas do Terreiro do Paço até quase à estação do Cais do Sodré”. Entre o rio e a Rua do Arsenal, outros edifícios que enquadravam uma alameda com árvores que desembocaria num miradouro sobre o Tejo. Previa-se semelhante alameda para a Praça do Município. “As vistas e perspectivas sobre o rio ficariam assim emolduradas, ao encontro das ideias mencionadas pelos artistas, poetas e escritores que ao longo de várias épocas descreveram Lisboa”, explica Gonçalo Cornélio da Silva.

Para o Campo das Cebolas a proposta também era ambiciosa. Em vez de um espaço amplo aberto à Avenida Infante D. Henrique, “uma pequena praça”, apenas grande o suficiente “para proporcionar um maior afastamento para as vistas sobre a Casa dos Bicos.” O arquitecto lembra que “existiam construções em frente à Casa dos Bicos” para defender a existência de quatro grandes blocos em redor da praça.

Foto
Na Ribeira das Naus, o projecto previa edifícios com arcadas, iguais aos da Praça do Comércio DR

Apesar de sublinhar que “a beleza não é uma coisa insubstancial”, Cornélio da Silva diz que não desenhou esta quantidade de construções apenas por motivos estéticos. Elas conduziriam, argumenta, a “um significativo aumento de novos fogos, comércio e serviços, o que permitiria num curto espaço de tempo concluir a reabilitação e renovação da Baixa Pombalina.”

Anulados os dois “vazios”, também a Praça do Comércio seria reformulada. Primeira mudança: fazer daquele espaço um quadrado perfeito. “Uma visão universal e ecuménica não seria compatível com a estátua equestre do rei D. José no centro”, explica, pelo que o redesenho da praça em forma de quadrado deixaria “o centro sagrado vazio”. Em redor, calçada portuguesa com os signos do zodíaco, os quatro elementos e os planetas. Mais do que simbólicos, estes motivos teriam uma utilidade prática: “Desta forma qualquer um poderia marcar encontro num determinado local na praça.”

Foto
O Campo das Cebolas seria significativamente mais pequeno do que é hoje DR

Gonçalo Cornélio da Silva, que continua a ser funcionário da câmara e hoje é assessor dos vereadores do PSD, sabe que estas ideias são controversas e que dificilmente serão aplicadas num futuro próximo. Mantém-se convencido, no entanto, de que este é um caminho inevitável – e que não está sozinho.

Depois de concluir o mestrado na Universidade de Notre Dame, no estado americano do Indiana, o Building on the Edge of Tagus River: The New Lisbon Riverfront esteve em várias exposições. Uma delas foi a dos New Palladians, realizada em 2008 em Londres por ocasião do 500º aniversário do arquitecto italiano Andrea Palladio – e apoiada pela fundação do príncipe Carlos.

Foto
Na Praça do Comércio, o Cais das Colunas avançaria dez metros para o rio DR

“As cidades são as maiores oportunidades que temos para projectar a nossa imagem, de nós mesmos ao mundo e para a posteridade”, diz o arquitecto. “As grandes cidades do passado que ainda habitamos falam dos sonhos e aspirações das suas sociedades e devem entender a memória não como uma nostalgia de glórias vãs, mas como inspiração para qualquer realização contemporânea e dinâmica”, remata.

Sugerir correcção
Comentar