Carta aberta à nova Direção do ICA
É verdade que as coisas são difíceis; é verdade que somos um país pobre e sem recursos, mas é chegada a hora de não nos perdermos na retórica e propor medidas concretas que ajudem a mudar o estado das coisas.
Com o Verão acabado de chegar, e não fossem os trágicos acontecimentos que estamos a viver, este ano teria sido pródigo em boas notícias para Portugal - seja pelo controlo do défice, pela Geringonça, pela vitória na Eurovisão e, em especial, pelo cinema português: Urso de Ouro em Berlim pelo segundo ano consecutivo, o FIPRESCI em Cannes, o êxito de São Jorge, a atribuição a Nuno Lopes do prémio de Melhor Ator em Veneza, etc.
Mas uma boa nova talvez tenha escapado à maioria dos cidadãos - a tomada de posse de uma nova direção do Instituto de Cinema e Audiovisual, o que, após quatro anos de “nada”, fruto duma direção inoperante e sem visão estratégica, nos permite acreditar que chegámos a um momento chave em que tudo pode ser reconsiderado.
É verdade que, nos últimos anos, o cinema português tem granjeado prestígio internacional. Mas cada sucesso alcançado configura-se quase sempre como um caso isolado, uma solitária e dolorosa travessia no deserto em que cada um puxa lentamente para seu lado.
E num país em que tudo está por fazer e no qual a crítica não-construtiva é passatempo nacional, penso que, enquanto cidadão e profissional do sector, devo tomar a iniciativa - talvez ingénua - de propor um conjunto de medidas que, salvo melhor opinião, poderão ser benéficas para o futuro do nosso cinema.
Em primeiro lugar, é necessário “arrumar a casa”. Refiro-me ao funcionamento do ICA, e à necessidade absoluta de pôr fim ao ambiente totalmente fratricida que se vive no meio.
Portugal é um país de escala familiar, o que facilita o tráfico de influências. Urge, pois, adotar medidas que melhorem a transparência e democratizem o acesso aos programas de apoio, pondo fim a décadas de compadrios. É necessário que, de espírito aberto e apesar da divergência de pontos de vista, os agentes do sector aceitem participar num debate alargado promovido pelo ICA, organizado sob a forma de congresso ou duma espécie de “Estados Gerais do Cinema Português”, onde se procure alcançar um patamar mínimo de entendimento para a elaboração de uma verdadeira estratégia para o desenvolvimento da nossa cinematografia. Assim, durante uma semana, vários grupos de trabalho com diferentes pontos de vista debateriam as áreas essenciais para o sector para que desse processo nasça um documento síntese, passível de ser usado pelo ICA para desenhar um plano de atuação a longo prazo.
Com este debate, reconheceríamos que, apesar das nossas diferenças, apenas juntos podemos chegar a algum lugar, sobretudo num mundo em que, à exceção da Europa, a nossa cinematografia tem uma relevância próxima do nada.
FUNCIONAMENTO INTERNO DO ICA
Não sendo porta-voz do sector intuo que o que se espera desta e qualquer Direção seja a adoção de políticas públicas claras e que defenda junto da tutela as necessidades do nosso cinema e dos seus agentes criadores.
Caso contrário, continuaremos com um Instituto esvaziado de funções, que se limita ao papel de um mero gestor de concursos que qualquer Departamento das Finanças poderia tutelar. Nenhuma instituição pública pode perder a maioria do seu tempo em autogestão, esquecendo a função para a qual foi criada. Nesse sentido, acredito que, infelizmente, a nova direção vai confrontar-se com uma maioria de trabalhadores desgastados com uma mesma rotina, fartos de ver, na maioria dos casos injustamente, as suas qualidades profissionais sistematicamente postas em causa por todos no sector, e sobretudo perdidos naquilo que é suposto ser o seu propósito, devido a uma sistemática ausência de liderança. O que é grave num país onde as dificuldades são óbvias e transversais a todas as produtoras, consequência de um sector suborçamentado, repleto de fragilidades, algum amadorismo e, onde abundam micro produtoras (diagnóstico onde também me incluo).
Por isso considero fundamental um processo de reorganização interna do ICA que se consolide através da criação de novas estruturas intermédias cuja missão seja clara e tenha como foco o estabelecimento de parcerias nos domínios da Educação, Promoção Nacional e internacional, Relações Internacionais, Apoio Jurídico, entre outros.
EDUCAÇÃO
Na área da Educação propõe-se a criação de um Gabinete Educativo que, ponha em pleno funcionamento o Plano Nacional de Cinema e desenhe, em colaboração com a Cinemateca Portuguesa e Cineclubes, um programa mensal para a rede de Cine-Teatros do País ( para que todos os cidadãos, no Continente e Ilhas, tenham acesso a uma cultura de excelência que infelizmente lhes é vedada e que existe quase única e exclusivamente em Lisboa). Importa também colocar em rede todos os museus de imagem e movimento, desde o MIMO, em Leiria, à extraordinária Casa Museu de Vilar dos realizadores Abi Feijó e Regina Pessoa, de forma a que estes façam parte integrante da vida das escolas como forma de fomentar e estimular o acesso ao cinema. Este Gabinete deveria ter também como missão a criação de protocolos com as escolas de cinema e audiovisual, colocando-as em rede e:
• Sensibilizando as direções dos cursos para a necessidade duma unidade curricular de história do cinema Português.
• Promovendo uma mostra anual, pública, dos filmes finalistas com a participação de todas as produtoras, de modo a colocar em contato os alunos recém formados com os futuros empregadores
• Desenvolvendo programa de workshops, que contribuía para a profissionalização do sector, abertos a todos, e ministrados por argumentistas e produtores de renome nacionais e estrangeiros.
PROMOÇÃO NACIONAL E INTERNACIONAL
A criação de um Gabinete para a Promoção Interna e Externa do Cinema poderia implementar um conjunto de medidas a nível nacional que passo a enunciar:
• Estabelecimento de parcerias com a TAP, CP, Rede Expressos, Netflix para que exibam cinema português,
• Realizar um estudo de opinião junto do público que permita averiguar qual a sua relação com o cinema português, os seus desejos, críticas e anseios.
• Promoção de uma campanha, elaborada por uma agência de comunicação, que tente minimizar o divórcio entres os portugueses e a sua cinematografia;
• Sensibilizar as maiores exibidoras para a disponibilização de, no mínimo, uma sala de cinema em Lisboa e Porto dedicadas apenas ao cinema português (criando hábitos de rotina) com horários regulares e não estreias duma única sessão às 3 da tarde, que ninguém vê. Nas restantes capitais de distrito, garantir que pelo menos um dia por mês se exiba cinema nacional.
• Garantir junto dos municípios que todas as cidades tenham pelo menos um lugar de projeção de cinema com sessões regulares;
• Fomentar junto das autarquias a criação de apoios para curtas-metragens de jovens realizadores
• Sensibilizar as grandes empresas nacionais para que abram concursos anuais da apoio às artes (compostos por júris) de forma a combater o “amiguismo” e assim democratizar o acesso aos apoios.
• Apoiar e promover junto do ANIM e da Cinemateca a necessidade de disponibilizar os principais filmes da história da cinematografia nacional e criar, à semelhança da RTP para os seus arquivos, uma plataforma online onde todos os filmes estejam disponíveis para estudantes e cinéfilos, se necessário através do pagamento de taxa de acesso.
• Tornar obrigatória a legendagem em Português de todos os filmes, indo de encontro à necessidade dos deficientes auditivos (o que permitirá também uma mais fácil compreensão por parte do mercado brasileiro).
• Criar uma comissão para a elaboração de um Grande livro de História do Cinema português, que condense bibliografia atualmente dispersa e que integre na sua equipa historiadores de diferentes áreas.
A nível internacional sugere-se a criação de um departamento de Relações Internacionais cuja missão passaria por:
• Definir e rever prioridades de investimento e coprodução em mercados externos (como é possível não existir um acordo com a Galiza?)
• Estabelecer um protocolo com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, para que em todas as embaixadas tenha lugar uma semana do cinema português, à semelhança da Festa do Cinema Italiano ou Francês,
• Promover uma secção especializada na embaixada de São Francisco (responsável por Los Angeles) de forma a organizar anualmente uma mostra de cinema nacional naquela que é hoje, ainda, considerada a meca do cinema aproveitando sinergias com os profissionais portugueses que por lá trabalham.
ACONSELHAMENTO JURÍDICO E LOGÍSTICO
Revelar-se-ia de grande importância e elementar justiça a criação de um Departamento de Aconselhamento Jurídico e Logístico vocacionado para pequenas produtoras, com os seguintes objetivos:
• Aconselhamento jurídico e esclarecimento sobre as linhas de apoio externas ao ICA, sobretudo para aqueles que conseguiram a proeza de produzir/realizar filmes sem apoios públicos.
• Estabelecer protocolos com agências de comunicação para que, a custos reduzidos, contribuam para a criação da imagem e identidade dos filmes de produtoras interessadas.
• Promover e apoiar juridicamente a constituição de cooperativas que aglutinem um sem número de micro produtoras como forma de unir esforços e minimizar custos e promover a criação de um “cluster criativo” na cidade de Lisboa que, junte num mesmo espaço diferentes produtoras e respetivos estúdios;
• Reformular o site do ICA para que, apesar das melhorias dos últimos anos, se torne numa ferramenta totalmente transparente e de usufruto geral. Condensando toda a informação atualmente dispersa como: endereços e contatos de cineclubes, escolas, sindicatos e respectivas tabelas salariais, e todas as linhas de apoio ao cinema externas ao ICA. Um site aberto para o qual também todas as produtoras contribuam com atualização de dados.
CONCURSOS
Deixo para o final o drama dos concursos e a já famosa novela “SECA”. Sejamos claros, ao longo de toda a vida do Instituto, sempre fizeram parte dos jurados membros das exibidoras, ou outras partes interessadas. Ao contrário do que tem vindo a ser dito também me parece que ninguém consegue compreender como, sobretudo em júris ímpares, um único membro do júri possa ter a capacidade de manipular de tal forma os restantes jurados que seja possível a uma operadora decidir o resultado final de concursos. No fundo, esta luta não passa de uma guerra entre facções que simplesmente querem tomar o poder aniquilando o adversário.
A novela SECA é, pois, um puro “fait-divers”. O verdadeiro problema dos concursos assenta na forma como o sistema se encontra desde há anos totalmente bloqueado - por se atribuir sistematicamente aos mesmos realizadores e produtores o financiamento à produção de longas, impossibilitando toda e qualquer regeneração do sector. Porque não é definido um montante máximo anual que uma produtora pode receber evitando a concentração de apoios numa única produtora, num país que produz somente uma média de 12 longas metragens por ano?
A verdade é que o sistema atual deixa de fora toda uma geração - a dos 20 aos 30 anos (esta sim a nova cinematografia nacional), que tem extremamente dificultado o acesso às linhas de apoio. Está na hora de parar de chamar jovens realizadores a profissionais com 40 anos de idade.
Quanto ao modelo dos concursos, apresento várias sugestões, sendo que nenhuma delas obriga a um reforço dos fundos, mas sim a uma melhor redistribuição dos mesmos:
1. Criação de linhas de apoio à produção por montantes máximos escalonados — por exemplo, um concurso para 600 mil euros; um para 400 mil euros; um para 100 mil euros. Atualmente, somos um país em que os filmes parecem ter todos a mesma exigência orçamental: uma primeira obra de ficção, quer seja um exercício poético sobre o azul filmado num único espaço, ou uma recriação histórica com uma batalha naval, recebe no máximo os mesmissimos 600 mil euros de apoio à produção.
2. Criação de um concurso específico para jovens até aos 30 anos.
3. Criação de uma linha de apoio a curtas-metragens de baixo orçamento apenas dirigida a alunos recém formados. Seria interessante criar um protocolo com distribuidores e exibidores para que financiassem este concurso, apresentando os trabalhos nas suas salas.
4. Criação de um concurso para cinema experimental e de ensaio — por ser um cinema de natureza muito distinta, não passível de ser exibido em salas comerciais, mas sim em museus e galerias (sem que nada de errado exista nisso). Caberá assim ao produtor a honestidade de decidir à partida para que segmento de mercado está o seu objeto fílmico direcionado e a que linha de apoio concorrer.
5. Destinar pelo menos 20% dos apoios a produções desenvolvidas exclusivamente por produtoras comprovadamente registadas fora do distrito de Lisboa.
6. Reforço da transparência do processo de candidaturas com: apresentações públicas de projetos - os chamados “pitchings” - com um júri composto por 4 elementos indicados pelo ICA (cujo voto pesaria 50% na decisão) mais uma plateia de 10 pares sorteados (ou pela Academia de Cinema ou pelas várias associações do sector) (cujo voto pesaria os restantes 50%), incorporando ainda mais 1 elemento da direção, que, em caso de empate, teria um voto de qualidade.
CONCLUSÕES
Termino com um desabafo e um repto para todos os colegas. É verdade que as coisas são difíceis; é verdade que somos um país pobre e sem recursos, mas é chegada a hora de não nos perdermos na retórica e propor medidas concretas que ajudem a mudar o estado das coisas. Sobretudo, para que as futuras gerações não passem pelo mesmo pesadelo diário que todos nós passamos, nós aqueles que queremos fazer cinema em Portugal. Assim, sugiro humildemente a todos que elaborem uma lista com um mínimo de 5 ideias sem custos e de aplicação simples e imediata e 5 ideias mais estruturantes para serem futuramente avaliadas, e que as enviem para a atual direção para que todos, num futuro ideal, possamos beneficiar. Acredito que este tipo de medidas podem ser a base para uma carta de princípios a ser assinada por todos, desenhada a cinco anos, que funcionaria como uma espécie de guia prático para que o Instituto nos leve a todos no mesmo rumo, não no sentido artístico claro está, mas na forma de fortalecer, cá dentro e lá fora, enquanto coletivo que somos, a cinematografia nacional. Não é muito difícil e pode ser apenas o começo. O endereço de e-mail, esse fica aqui: info@ica-ip.pt ;)
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