Hanif Kureishi: "Sou um velhote e continuo difícil"
“Interessa-me a nova forma de racismo”, diz. Acaba de sair no Reino Unido Nothing. Que é sobre isso, mas também sobre o amor e o envelhecimento, coisas que permanecem incompreensíveis a este homem que continua a assumir-se um rebelde.
Literatura, política, psicanálise, inconformismo. São sinónimos na vida e na obra de Hanif Kureishi, escritor, argumentista que tem trabalhado sobre o indivíduo na sua relação com o mundo. Britânico, filho de pai paquistanês e mãe inglesa, cresceu na periferia de Londres, longe do universo cultural e com o rótulo de diferente — no sentido de menor. Essa marca ficou para sempre. Aos 62 anos, autor de oito romances, entre eles O Buda dos Subúrbios, Intimidade ou A Última Palavra (Relógio d’Água) dois volumes de contos, 14 argumentos para cinema, televisão e também peças de teatro, além de três títulos de não ficção, entre eles a memória My Ear and His Heart, sobre o pai, um secretário de embaixada frustrado que escrevia romances na mesa da cozinha e tinha a ambição de ser escritor e artista. Foi uma das grandes influências de Hanif, mesmo no dia em que abandonou o bairro onde vivia, aos 17 anos, e foi para Londres sem olhar para trás, renunciando à escola, desprezando a universidade, “cometendo” todos os excessos. Hoje confessa a surpresa de ter conseguido: ser escritor, artista e continuar desobediente, inconformado, pai de três filho de quem fala recorrentemente, os gémeos Sachin e Carlo, de 23 anos, com quem está a escrever uma série para televisão, e Kier, de 20. Pensa o indivíduo de forma tão íntima quanto política, um indivíduo criado sempre a partir da experiência pessoal — que expõe com algumas polémicas à volta — e de uma atenção especial à psicanálise. “Escrevemos sempre a partir do inconsciente”, disse na sessão que inaugurou a VII Lisbon Summer School, do Lisbon Consortium/Universidade Católica, sob tema Global Translations, a decorrer até este sábado em Lisboa. Começamos por aí, pensar a palavra “global”. E tendo Kureishi como interlocutor, o homem que diz piadas e se zanga quase sem mudar de expressão, sem nunca saber onde a conversa pode acabar.
O que é que a palavra global lhe sugere?
Hmmm... Há muitas coisas nessa palavra de que gosto: gosto de pensar que é uma grande oportunidade para as pessoas partilharem as mesmas coisas, falarem sobre os mesmos assuntos - os mesmos filmes, os mesmos programas de televisão -, uma forma de trocar coisas boas. Mas ao mesmo tempo representa a semelhança e o esmagar da individualidade, do que é único em cada lugar, cada cultura, cada tempo. É isso que me preocupa acerca de ser global: o que leva a uma homogeneização da cultura. Existe um perigo real de uma espécie de internacionalismo que faz com que todos os sítios sejam o mesmo. É óptimo que possa estar em qualquer lado e ter o Netflix e ver boas séries, mas ao mesmo tempo o Netflix é o grande fornecedor de conteúdos de televisão, como se fosse o guardião da alegria, o juiz do que está disponível para as pessoas, e isso é perigoso. Como muita gente sinto-me ambivalente com o que se designa de global.
Um dos seus temas literários é o indivíduo, o que cada um tem de diferente. A propagação da semelhança traz o medo da diferença?
O interessante é a diferença. Hoje estava a falar de miscigenação e da ideia de que um branco pode sentir-se poluído por pessoas de cor e perder a distinção, o privilégio de ser diferente, mas a questão é que as pessoas querem ignorar a diferença. Eu sou pai de um par de gémeos; são fisicamente iguais, mas não são iguais. Não existe o que se chama de semelhança em relação às pessoas. A semelhança é uma ilusão, logo o medo da miscigenação é uma falácia.
Cresceu num meio onde sentia ser diferente dos outros
Fizeram com que eu me sentisse diferente. Eu não me sentia diferente. Fizeram com que eu sentisse de forma muito clara que não era tão bom quanto os outros, que eles tinham qualidades que os tornavam superiores.
Que qualidades?
De pertencerem a um império, de serem mais ingleses do que eu, mais brancos, pertencerem à grande civilização branca, terem a maneira inglesa de ver, de falar, de comandar as pessoas que não fossem como eles e fazê-las sentirem-se seres menores.
Parte dos seus livros falam sobre isso, de crescer com o sentimento de menoridade.
Sim, o sentimento de ser menos. Era isso que era importante, fazer com que o outro se sentisse menos. Diferentes somos todos no sentido que já falámos. É a menoridade, o desejo de manter o privilégio.
Desejou esse privilégio?
Não. Eu desejava ser igual.
Nothing acaba de sair no Reino Unido. Numa entrevista ao Guardian afirmou que a questão que mais lhe interessa agora é o racismo. O racismo é mais uma forma de rejeição da singularidade.
Sim, o romance é sobre o racismo, mas também sobre a idade e sobre o amor. São outras coisas que me interessam e que continuo sem saber o que são. Quero saber mais obre elas, como sei que só vou conseguir se começar a escrever, escrevo. Não acho que seja uma coisa que se decida por antecipação.
Escreve para descobrir?
Sim, se tudo correr bem. Começo a escrever meio em branco e então qualquer coisa acontece e depois outra coisa acontece. Não me lembro de alguma vez ter decidido sobre o que iria escrever. Tem de ser uma inspiração, ou então é uma seca.
E descobriu alguma coisa quando chegou ao fim de Nothing?
Acho que pensei em coisas que nunca tinha pensado. Mergulhei nesta nova forma de racismo que tem a ver com o mundo muçulmano, com o Islão, e que é baseada em estereótipos por uma razão particular: organizar uma nova identidade branca na Europa. Os brancos têm uns determinados valores e um modo de vida que o mundo muçulmano não partilha. Mas o modo como as pessoas vivem o Islão é tão diverso e tão expansivo... Não se pode reduzir as pessoas as estereótipos. O que se pode fazer enquanto escritor, jornalista, pensador é falar da diferença entre as pessoas e o importante que isso é. E também que essas diferenças são o que com que as pessoas se entusiasmem umas pelas outras. Podemos querer conhecê-las por isso, e não evitá-las; querer ouvir delas o que elas são. Para isso elas terão de nos dizer coisas sobre as suas vidas.
O indivíduo outra vez.
Sim. É isso que os escritores fazem com os indivíduos.
Tem raízes muçulmanas, o seu pai é do Paquistão. Como é que isso se reflectiu na sua educação?
Não fui criado como um muçulmano apesar de ter crescido numa família muçulmana. Não me sinto com qualquer espécie de identidade muçulmana. De modo algum. O meu pai, a minha avó, os meus primos, sim, mas eu rejeito absolutamente qualquer forma de autoridade religiosa.
Leu muito James Baldwin quando era jovem. Ele denunciava e escrevia sobre outro tipo de racismo. Ou não?
Quando era jovem tinha todos os livros de Baldwin e adorava vê-lo na televisão quando era miúdo, nos anos 60. Ele era tão eloquente e tão bonito! Adorava-o. Ainda não vi este filme [I am Not Your Negro, de Raoul Peck], estou à espera que chegue à televisão para não ter de sair de casa. Uma das coisas de que mais gostava nele era a capacidade que tinha de nos falar, de falar a cada um de nós de um modo muito pessoal, como se fôssemos a única pessoa no mundo. Ele falava pessoalmente comigo, e falava da sua própria vida, lingando a sua vida ao mundo; à América, à sociedade em que vivia. Tinha um enorme talento como romancista e como ensaísta. Muitas vezes as pessoas pensam que o ensaio é uma forma abstracta, impessoal, mas para mim o exercício ensaístico é muito bonito, sobretudo no caso dele, quando usa a primeira pessoa. A subjectividade é linda, mas ele quer que o escutemos de modo a que o mundo inteiro possa entrar na conversa. É uma maneira muito bonita de escrever, que me apaixona. Talvez por isso nunca desista de escrever sobre mim mesmo. Ele era uma espécie de mestre. Fico muito emocionado com a ideia de ver este documentário. Espero que chegue aos jovens, que os faça pensar, que conquiste novos leitores. Acho que vou reler os primeiros romances dele. Ele representa um grande período da literatura americana, particularmente no ensaio. Pense nos ensaios de Norman Mailer e de Gore Vidal. Maravilhosos! Em Truman Capote, Baldwin. À medida que o tempo passa essa geração de escritores torna-se mais e mais admirável. Foi uma geração que me influenciou muito. Muitos deles apareciam na televisão.
Tem contado que cresceu longe do universo cultural, culturalmente criativo, mas que tinha livros em casa. O que lia?
Não cresci no mundo cultural, mas a minha família gostava de cultura. O meu pai tinha muitos livros. Como eu. E tenho muitos livros do meu pai sobre filosofia, psicologia, sociologia, muitos romances. Naquele tempo a literatura era a grande formadora. Acho que foi um privilégio ter crescido nesse ambiente literário. De outra forma não sei. Os subúrbios eram um lugar muito complicado. Vejo outro privilégio: uma formação além da que me davam na escola. Hoje fico impressionado com a quantidade de coisas que li. Li os clássicos, mas era um grande fã da literatura americana, por aquilo que representava e como contava. Era tão excitante, vibrante e novo. Era o Woodstock, os anos 60; era Bob Dylan e Jimmy Hendrix; era Miles Davis e o Black Power e os Black Panthers. Era a terra de onde chegava tudo aquilo e aquilo era incrível para um rapaz dos subúrbios de Londres como eu. E era cultura e era rebelião e era beleza. Quando olhamos para isso agora é chocante perceber como foi grande aquele período. De grande inteligência e de um conflito muito, muito importante. Foi o emergir de outros grandes escritores. Joan Didion, Susan Sontag... Incrivelmente florescente. E lá estava eu sentado na minha sala dos subúrbios a ler a Rolling Stone e escritores como Tom Wolf, Hunter S. Thompson....
Veio daí o impulso para escrever?
Veio quando tinha uns 14, 15 anos.
Como?
Lembro de olhar pela janela, na escola, completamente deprimido e ter a ideia de ser escritor. Naquele momento fiquei muito animado.
Como uma epifania?
Sim, uma razão para continuar. Tinha um objectivo, podia ser escritor. Lembro do momento de forma muito precisa. Consigo ver os caixilhos da janela e também o desespero e a frustração de estar naquela aula merdosa, com professores medíocres e a sua noção de educação. A ideia de me tornar escritor mudou tudo. A partir daquele momento eu sabia o que iria fazer.
E escreveu muita coisa.
Sim.
Incluindo pornografia.
Mas por muito pouco tempo.
Por dinheiro?
Sim, mas não era nada interessante. O que era interessante era eu pensar em como escrever, em como me tornar escritor, sobre o que escreveria, de que ponto de vista, com que voz. Muitos anos de aprendizagem.
Como chegou à sua voz?
Muitas vezes diz-se que a voz já está cá dentro, só precisa de sair. Acho que essa não é a história toda. É preciso construir uma voz. Eu costumava escrever como Hemingway porque gostava muito de Hemingway. Depois escrevia como outra pessoa porque gostava dessa pessoa, até que todas essas vozes diferentes começaram a soar como eu.
E esse eu, a sua biografia, a sua subjectividade, é uma constante nos seus livros…
É tudo o que tenho, o que me faz diferente de toda a gente e é sobre isso que sei escrever.
Disse há pouco que o seu último romance é sobre a idade. Como está a lidar com o envelhecimento?
É muito interessante escrever sobre isso porque ainda não entendi nada disso. Claro que ter 60 anos não é como ter 40, e quando se é novo a ideia de ter 60 anos é como ter 100 anos, mas agora… Tenho um amigo com 75 anos, separou-se da mulher, tem uma namorada, passeiam-se de mãos dadas, foram viver juntos… Quando eu era novo ninguém com essa idade ou mesmo mais novo teria esta vida. Estes novos desenvolvimentos interessam-me bastante, a longevidade, o poder começar uma nova vida, a flexibilidade das relações, encontrar novos parceiros, casar, entusiasmar-se com novos projectos. Mas também o envelhecer, a doença, a possibilidade da morte enquanto ela é só isso; como é que pensar isso nos muda, nos faz pensar no mundo de um modo diferente. Como é que podemos viver com os nossos filhos, conosco; como é que posso ser escritor.
Escreveu uma memória centrado no seu pai. Chamou-lhe My Ear at His Heart [2004]
Sim, o meu pai tinha muitos problemas de coração (riso). É um título irónico, em parte, mas tem a ver com o acto de ouvir. Ouvir o nosso pai, ouvir o passado, aprender acerca da sua vinda, sobre a minha família, sobre a sua escrita. Há dias eu estava na minha casa a olhar para um dos livros do meu pai e há uma passagem maravilhosa sobre a sua mãe, a minha avó, que eu nunca conheci. Era uma islâmica devota, passava muito tempo no quarto a rezar. Ante disso teve 13 filhos, dois morreram. Não me admiro que tenha passado o resto do tempo no quarto a rezar. E o meu pai escreve que ela costumava levá-lo a lugares religiosos para se encontrar com guias espirituais. Achei aquilo tão comovente e reli essa passagem de modo novo e pensei que essa releitura fez de mim também uma pessoa diferente. E li essa passagem aos meus filhos para estabelecer esse lado genealógico. Isto não é apenas pessoal. Tem a ver com a índia, com ser britânico agora e de como todas essas coisas estão ligadas e de como isso nos atinge profundamente, nos desenvolve. Cria integração. Se eu ler esta passagem aos meus filhos ou a um dos meus filhos, cria um elo entre mim e eles, mas também eles e a Índia antes da Guerra. Ajuda-os a estabelecer a sua identidade. Posso ler esta história aos meus filhos e eles fazerem dela o que bem entenderem. Interpretam ou interpretam mal à sua maneira.
Afirmou que toda a literatura é política. Vê-se como uma voz política, interventiva quando escreve sobre si enquanto individuo?
É política no sentido em que situa o indivíduo no mundo. Num mundo onde é possível fazer umas coisas e outras não. Pensar na minha infância e na ideia standard do homem branco como líder, o homem que comanda o império, alguém que domina e outro que é dominado e ver aí a minha capacidade de escrever a partir disso, de me tornar actor nesse processo e contar a minha história. Nesse sentido é dialéctica, mas é política porque só a produzo em resultado do império.
Uma palavra importante em toda a sua obra e no seu discurso sobre ela: intimidade. Tem um romance com esse título. Manter a intimidade, hoje, é um acto de resistência?
Intimidade não é o mesmo que exibicionismo ou narcisismo. Mas estou aqui a pensar que hoje posso voltar para o meu quarto e falar com um dos meus filhos no Facetime. Ele está de férias em França, com a namorada, e podemos ter uma boa conversa. As redes sociais criaram este canal de oportunidades. Ligam-nos, podemos falar e esse progresso é bonito, mas a maior parte do que vejo, por exemplo, no facebook, é vaidade, futilidade, exibicionismo, alguém a mostrar fotos de si próprio numa tentativa desesperada de haver alguém que as aprove, as queira, se ligue. Há uma infantilidade, uma desesperança. Isso não é intimidade. Pôr cem fotografias de si próprio no Facebook é desespero na esperança de que alguém olhe e note, e entenda. Parece-me triste. Teria de haver alguém ali, não é um milhão de selfies que revela esse alguém, ou que nos valide enquanto pessoas. É uma questão interessante não é? Como fazer com que alguém nos note? Para isso é preciso muito mais do que uma fotografia. É preciso mostrar alguma verdade e isso é muito difícil porque as outras pessoas também são difíceis.
É possível estabelecer o paralelo entre este tipo de comportamento a que chama de vaidade e acontecimentos contra os quais se tem manifestado através da escrita, como o Brexit, as eleições nos EUA? Como faz a psicanálise deste momento?
O neoliberalismo fez as pessoas muito vaidosas, narcisistas e competitivas e fá-las pensar bastante em si mesmas e a maior parte das vezes, pensar em nós mesmos é uma perda de tempo. A única maneira útil de pensar em nós mesmos é em relação a outras pessoas, o modo como somos afectados por elas e as afectamos com o que fazemos; o modo como as fazemos aproximar ou as afastamos. O estudo de si mesmo só faz sentido quando nos faz pensar em nós e nos outros enquanto uma unidade, em relação, no que nos faz sentir vivos. Quando penso nessas imagens no facebook penso que essas pessoas nunca sabem o que é o valor da solidão porque estão sempre a tentar ser validadas, que alguém chegue, se junte. É desesperante. Não funciona. Não fará de ti o que pensas que pode fazer. É como o Brexit. Não vai trazer mudanças reais a nível social. Na casa, no trabalho, na saúde. É triste assistir a esse mal-entendido.
A ligação de que fala, ao outro, passa por uma das palavras maia usadas actualmente: empatia?
Essa palavra não significa muito para mim. Nunca a entendi realmente. Acho que vem da psicologia do ego americana [American Ego Psychology] e e pretensamente quer dizer que o analista nos entende. é uma ideia falsa. A oura pessoa tem de permanecer outra. Podemos simpatizar com ela, quer dizer que estamos a sofrer com ela. Simpatizar é uma palavra de que gosto. Na psicanálise não há que ser empático, o psicanalista tem é de ser capaz de ver o nosso inconsciente. É um mal-entendido completo a psicanálise achar que o psicanalista deve ser empático. Deve sim ouvir a outra pessoa e estar atento ao que ela diz. Quando se vai fazer psicanálise não se vai assistir a qualquer sessão estranha de duas pessoas a sentirem o mesmo. Isso não vai ajudar o outro.
Costuma descrever o seu processo de escrita como qualquer coisa que se passa ao nível do inconsciente.
Sim, mas tenho de estar consciente do que estou a pensar e a sentir. É quando o ego está ausente. Quando estou a escrever capto qualquer coisa, não me deixo apanhar. Os pensamentos vêm à cabeça e isso é muito útil, mas é preciso prestar-lhes atenção, não os estamos a fabricar. É como estar atento a qualquer coisa que se passa nos bastidores; se tivermos sorte podemos ouvir alguma coisa que nos pode enriquecer. Emerson, o ensaísta americano, escreveu bastante sobre isto. Escreveu que a boa literatura é uma questão de prestar atenção, não uma produção de pensamentos ou ideias, mas prestar atenção aos pensamentos e ideias que já estamos a produzir. É como quando vemos outra pessoa. Imagine que vai encontrar-se com alguém para uma bebida; é-se assaltado por milhares de impressões, mas geralmente não lhes damos atenção. Se dermos podemos perceber que estamos a formular um pensamento, inconscientemente, sempre. E isso pode ser muito mais útil do que nos esforçarmos para sermos empáticos ou ver como produzimos ideias. Freud escreveu muito sobre sonhos e devaneios. Se fizer psicanálise 12 horas por dia há um momento em que deixa de conseguir concentrar-se para ir buscar coisas ao inconsciente. Isso interessa-me muito.
É muito diferente escrever um romance ou escrever para televisão ou cinema?
Sm. Escrever para televisão é uma grande chatice. Escrevo porque me podem dar 10 milhões de libras para o fazer, mas por isso toda a gente se acha no direito de me andar a lixar a cabeça. Se eu escrever um romance ninguém me chateia.
Muitos escritores têm dito que se sentem tentados a escrever serie de televisão e que muito da boa literatura que se está a fazer actualmente está aí. Concorda que pode ser um desafio para um escritor?
É uma forma muito boa para os escritores. O cinema não é exactamente uma forma para escritores, mas para realizadores. Desde Os Sopranos, talvez. Foi escrito por David Chase, um óptimo escritor. O cinema tonou-se demasiado auto-consciente, demasiado bonito, demasiado estetizado. Os realizadores querem ser artistas e muito poucos são realmente artistas.
Nas suas biografias o seu nome surge muitas vezes com a palavra artista à frente: Hanif Kureishi, artista.
Sim? Bom, eu faço qualquer coisa de novo e um artista é alguém que faz alguma coisa nova para os outros, conto histórias para outras pessoas. Acho que é muito importante ver a ligação, enquanto escritor, entre nós e as outras pessoas. O elo é muito importante. Muitos dos meus alunos nas escolas de escrita criativa não estão atentos a ninguém. Logo que começamos a escrever para outra pessoa a escrita torna-se melhor. Não é apenas mergulhar nos sonhos ou escrever um diário; não é pessoal. A arte ocorre no espaço entre pessoas.
Escreve para ser lido.
O leitor imaginário situa-me, ajuda-me. Há alguém que vai ler isto, perder tempo com isto para tentar ganhar tempo com isto. Isso foca-me. De outra forma somos loucos a falar sozinhos, para nada.
O seu primeiro romance, O Buda dos Subúrbios foi publicado em Portugal pela primeira vez em 1992.
Pois é. Não sei como será ler esse livro agora, não o voltei a ler, acho que o acharia muito perturbador, porque é como um retrato meu de quando eu tinha 17 anos. Os meus filhos são mais velhos agora do que eu era então.
Eles leram?
Não. Eles não lêem os meus livros. É bom para eles que não leiam.
Esse é um conselho de pai, não leiam os meus livros?
Não, não. Eles escolheram não ler. Farão isso quando eu estiver morto, agora não o fazem.
Têm medo?
Têm, de ser tão íntimos com o pai, de uma forma quase incestuosa. Um filho não deve ficar próximo do pai ao nível do incesto. Um filho precisa de espaço, é essa distância que os torna indivíduos, de outra forma eles podem ser engolidos por nós, impressionam-se, nunca podem ir embora e ser eles mesmos.
Quando esse livro foi publicado o seu nome surgiu colado a um rótulo: rebelde. Vê-se como um rebelde?
Sim.
Porquê?
Porque faço as coisas à minha maneira. Não gosto de me conformar. Estou sempre a discutir. Não sei bem porquè. Os meus filhos comportam-se melhor do que eu. Se vão a algum lado põem uma gravata, ou vestem um fato e portam-se bem. Eu não sou capaz, mesmo na minha idade. Sou um velhote e continuo difícil. Não sei porquê, mas a idade mantém-me como sou, é a minha individualidade.
O que faz zangar-se? O Brexit?
Não, torna-me deprimido. É muito deprimente.
Gosta de pensar no Reino Unido como parte da Europa?
Muito. Não parte do sistema económico; não como parte do neoliberalismo, mas pela cultura europeia e também porque Inglaterra se torna muito isolada, apartada do resto do mundo, e isso é muito limitador. Deprime-me. E não tem a ver com o homem branco, mas com a superioridade inglesa, com a ideia de privilégio, de muitas ideias da Igreja. Acho repugnante. Por isso o Brexit me deprime e não me enfurece. O fenómeno Trump sim, põe-me louco. Foi um choque. Acho que o Brexit pode ser reversível, Trump pode ficar dois mandatos! Consegue acreditar, os americanos gostarem mesmo dele?! Tenho medo de voltar à América agora. Não sei se volto. Não quero ser detido no aeroporto, não quero sentir que ninguém me ouve porque as minhas raízes são muçulmanas. Essa paranóia deixa-me louco.
Correcção: o livro O Buda dos Subúrbios, de Hanif Kureishi, foi publicado pela primeira vez em Portugal em Julho de 1992, pela Puma Editora. Há dois anos, na Relógio D'Água, foi publicada uma reedição.