“Nós, os que ficámos vivos, também morremos um pedaço”
As aldeias de Pedrógão Grande vão levar muitos anos a renascer das cinzas. Os mortos, ultrapassado o choque inicial, começam agora a doer. E as tentativas de reconstrução são ainda tímidas.
“A árvore da trovoada? Em frente e depois à esquerda. Mas olhe que ali não caiu raio nenhum: aquilo foi fogo de mão”, avisa Maria da Conceição. Com uma barra de sabão na mão, a idosa de galochas e boné azul muito sujo de cinza vai tirando água de um balde para lavar um cão branco e castanho, a sua única companhia desde que as labaredas — que, de acordo com a versão oficial, começaram nesta localidade, em Escalos Fundeiros, Pedrógão Grande — ditaram a debandada geral.
“O fogo estava aqui ao lado e as pessoas, em vez de o tentarem apagar, puseram-se a fugir. Ainda perguntei ao meu primo, aqui da casa ao lado: ‘Ó Miguel, então tu tens mais amor ao corpo do que à casa?!’ Mas ele lá foi.” Maria da Conceição bem quis andar pelos montes, preocupada que estava com a casa e com as galinhas, mas a GNR viu-a tão desnorteada que, afastado o risco de fogo, a fechou à chave em casa. “Só à noite é que me vieram trazer a chave.” Terá sido isso que a salvou, deixando-a como a vemos agora, à porta de casa, “aos pontapés do mundo”.
Com 82 anos, diz-se preparada para “aguentar aquilo que Deus Nosso Senhor quiser por quanto tempo ele quiser”. Do que não a convencem é que o fogo que deflagrou há exactamente uma semana, e que deixou um rasto de pelo menos 64 mortos e 254 feridos, foi fúria da Natureza. “Aquilo foi posto por mal. Puseram-se a falar do raio e da trovoada porque se querem ‘desviar’ por não terem conseguido deitar a mão a quem foi”, interpreta.
O número de mortos e de feridos neste incêndio dá para encher várias folhas A4. Oito dias volvidos, e passado o choque inicial, os mortos começam a doer. Há sobreviventes que, nos últimos dias, se arrastaram por seis, sete, oito, nove, dez funerais. E, apesar do cansaço, motivado também pelo cortejo de políticos, técnicos, assistentes sociais e jornalistas a calcarem alcatrão prontos a disparar perguntas, o que resta de forças vai-se transformando em revolta.
A revolta de Vanessa
“Então os bombeiros viam as casas a arder e não as apagavam porque não tinham ordens? Puta que pariu as ordens”, dispara Vanessa Varejão, ao balcão do Café Santa Catarina, em Vila Facaia, despachando cafés e copos de vinho tinto sobre um balcão de vidro. Nas traseiras do café está a igreja onde para daqui a algumas horas estão marcados pelo menos cinco funerais. Das chamas já só se vê o fumo, aqui e ali, na paisagem chamuscada. Os cabos de fibra óptica já foram substituídos, os de electricidade também.
“Vieram os técnicos das limpezas e as tropas e a protecção civil também cá tem andado, a distribuir alimentos e rações para os animais... Agora sim, vê-se ajuda. Mas, quando o fogo andava aí, eram as pessoas sozinhas a ir buscar água ao poço com baldes. E os poucos bombeiros que se viram, já muitas horas depois, viam as casas a arder e não ajudavam porque não tinham ordens!”, explica Vanessa. Um dos fregueses, holandês radicado há vários anos, despede-se numa fúria mal contida (“Isto foi comandado por amigos de amigos que não deixaram o orgulho de lado”) e deixa a dona do estabelecimento com a missão de traduzir: “Isto foi mal comandado. Levantaram-se uns senhores do sofá em Lisboa e, sem conhecerem o terreno, vieram para aqui dar ordens que só dificultaram o trabalho dos sapadores e dos voluntários que conhecem bem o terreno.” Conta que andou horas com a filha de um ano nos braços a fugir sem saber para onde. Despiu-se para proteger a bebé do fumo. Salvou-a alguém que, passando de carro, a deixou numa das casas em cuja cave se refugiaram outros como ela.
“Foi na casa do senhor Manuel, já aqui adiante, numa zona onde há vários pontos de venda de gás. O senhor Manuel às tantas passou-se porque os bombeiros iam a passar não sei para onde e recusavam-se a apagar o fogo. Sabe o que aconteceu? Alguém agarrou num bombeiro pelos colarinhos, que, coitado, não tinha culpa nenhuma, e obrigou-os a apagar o fogo de uma casa que estava a começar a arder cheia de botijas”, relata, garantindo que a descoordenação que se sentiu no terreno já levou os comandantes das corporações locais a ameaçar demissão, “porque eles queriam trabalhar mas não tinham ordens para isso”.
É Vanessa, com as suas olheiras a denunciar noites em claro, a oferecer indignação a rodos a quem entre no seu café e, do lado de fora, um silêncio sepulcral que se estende como um manto acinzentado pelos aldeamentos vizinhos. Em Várzeas (onde morreram mãe e filhas e onde morreram os nove que, tendo deixado a mesa posta para o jantar, nunca mais voltaram) tem-se agora a sensação de se ter entrado numa aldeia fantasma.
O fim do mundo
O vento faz tilintar um espanta-espíritos, numa varanda vazia, que dá para ruas vazias, onde casas intocadas pelas chamas convivem, porta-a-porta, com outras que arderam até aos alicerces. As roupas lavadas num estendal são dos poucos sinais que denunciam a existência de vida. O resto são flores mortas em vasos alinhados, carcaças de automóveis deixadas onde o fogo os apanhou, sacos de pão deixados na maçaneta da porta sem ninguém que os recolha.
Ignora-se a EN 236-1, segue-se por caminhos onde o vento levanta uma cinza que cria um sabor sujo e queimado na boca, e adentra-se pelo silêncio em Adega. Antes, junto à estrada que vai dar a Cume e a Casal da Pevide, vários editais anunciam para o final da tarde os funerais de Maria Odete e de Felismina Nunes. Não há passos em volta nem vale a pena ir perguntar ao café mais próximo. Ambas “faleceram no sábado durante o incêndio”, lê-se. E, ao lado, as tentativas de retomar o encadeamento dos dias lêem-se em avisos como os que localizam os pontos de distribuição de alimentos humanos e palha e rações para animais e os que garantem que a inventariação das habitações afectadas pelos incêndios ficarão concluídas até ao dia 25.
O problema é que, por mais peritos que cheguem para calcular estragos, por mais que se municiem com documentos Excel e alicerçados em jurisprudências, nunca ninguém conseguirá pegar no fio do tempo no sítio em que ele quebrou. “Foi o fim do mundo, filha”, soluça Lucinda Henriques Gonçalves. Com 82 anos, é uma figura modestíssima, galochas e lenço na cabeça, regador na mão a espalhar gotas num bocadinho de horta em que se salvaram umas cebolas e alfaces. Já passaram vários dias, mas o luto só agora começou. “Ainda se fosse uma doença que tivesse dado às pessoas, agora morrer tudo queimado...”, remói. As suas mãos viajam entre a cabeça e os campos em volta para apontar figueiras, oliveiras, milho e videiras, tudo feito em cinzas.
De repente, Lucinda estanca para perguntar:
— De onde são?
— Do Porto.
— Já lá andei perto, numa excursão. Fomos ver o mar. E lá também ardeu tudo assim?
— Não.
— Então podem botar as mãos a Deus. Isto aqui foi uma coisa para matar todos. Ainda escaparam alguns, mas esses foi porque lutaram muito. E para quê? Ficamos metidos num buraco. Haverá quem nos ajude? O poço, como vai ser para o limpar?
Pudesse Lucinda deslocar-se meia dúzia de quilómetros até ao Largo da Eira, em Pobrais, que era habitada por cerca de 30 pessoas, e talvez as suas perguntas não se limitassem a fazer eco. “Ontem andaram por aí a perguntar do que é que as pessoas precisam. Foram incansáveis. Mesmo os psicólogos deixaram números de telemóvel e tudo”, conta Célia Farinha, molho de couves debaixo do braço. “É bom ver que não estamos aqui abandonados no meio das cinzas”, agradece. Conta que se refugiou com o marido e os dois filhos dentro de casa, quando o sítio foi invadido pelo fogo em redemoinho. “Às tantas, o meu filho virou-se para mim e disse: ‘Mãe, ficámos aqui sozinhos e vamos morrer.’ Disse-lhe: ‘Vamos, filho, mas morremos todos juntos’, porque pensei mesmo que morríamos!”
Sobreviveram, ao contrário dos 11 habitantes de Pobrais que tentaram fugir e foram travados pelas chamas, mas Célia não sabe como há-de fazer para preencher os vazios. “Aqui morreram vários vizinhos do pé da porta; no meu trabalho morreram cinco. Uma delas era como se fosse irmã. E nós, os que ficámos vivos, também morremos um pedaço.” Passa alguém que pergunta pelas horas de um funeral. Célia retoma: “Ficam as casas vazias, destruídas. Não há sítio por onde se passe que não nos lembre a tragédia. Mas, ir para onde?”, questiona.
Empregada numa fábrica de lanifícios, nascida e criada no lugar, Célia sabe que em dez anos a floresta voltará a estar verde. A aldeia é que talvez já nem exista. “Quase todas as pessoas que tinham uma ligação ao lugar perderam alguém. Vinham, traziam crianças no Verão, brincava-se. Agora ficam desmoralizados. Não vão querer vir, porque a dor com que ficamos não há forma de a apagar. E será que isto não podia ter sido diferente? É que, naquela noite, não tínhamos uma gota de água para impedir o fogo nas casas, apenas aquele chafariz que deitava umas lagrimitas”, aponta.
Lutar pela vida
A partir de Figueiró dos Vinhos, o padre José Rosa Gomes calcorreou aldeias, entre funerais e tentativas vãs de apaziguamento da dor. “As pessoas começam a ficar mais calmas, mas também mais revoltadas. Há um sentimento triste de revolta porque muitas pessoas foram deixadas sozinhas a lutar pela vida. E não havia razão nenhuma para os bombeiros se porem a poupar a água como puseram. Era um deixar arder numa zona que até é cercada por três barragens. E as pessoas põem-se agora a pensar...”
Enquanto pensam as pessoas, as autoridades tratam de apagar as marcas. Nalguns pontos da malfadada “estrada da morte” há alcatrão novo ao lado do velho, que preserva as marcas fundas de pneus aos ziguezagues, e o tracejado foi reposto com um branco reluzente que destoa da negritude à volta. Num sinal de trânsito, alguém pendurou um ramo de flores envolvo em papel de alumínio. Há rails novos e, espalhados pelas bermas, vários camiões e tractores ardidos. Quando, numa das poucas casas que preservou o branco e verde originais, o PÚBLICO pergunta se há cães, a resposta é mais ou menos óbvia:
— Morreram todos.
Maria Dolores e António Alves, os proprietários, não, porque passaram a noite a apagar o fogo com a água que tinham, tendo aguentado a noite junto à soleira, sobre um tapete, para cuidar que as chamas não se reacendessem. Não lhes ocorreu que, a poucos metros, tantos morriam queimados. “Estávamos os dois sozinhos, aqui, a ver também a morte a querer levar-nos...”, recua António, ligadura no braço. Dolores chora e, entre soluços, lá vai dizendo que a cabeça “fica zonza”, o que a leva a cair para o lado.
Garante que, no vai-e-vem automóvel que se seguiu ao fogo e que ontem ainda durava, ninguém parou a oferecer ajuda ou, na falta desta, a oferecer tempo para ouvir coisas (só aparentemente insignificantes) como esta:
— As cebolas, as couves, os tomates, o feijão, os coentros, foi tudo: não ficou uma única folhinha verde.
E, numa toada monocórdica, como quem reza:
— ...as batatas, a salsa, a hortelã, os kiwis, as maçãs, os pêssegos...
Morreu tudo no seu quintal e nos vários quilómetros à volta desta casa rodeada de cinzas desde que um raio, aponta a versão oficial, ou “alguém por mal”, acusa Maria da Conceição, deu início ao fogo mais mortífero de que há registo no país.