Macron: uma personalidade política em construção
Este terramoto político francês pode vir a revelar-se aliás de importância decisiva para o futuro da União Europeia. Não será por acaso que Angela Merkel admitiu esta semana a possibilidade de criação de um orçamento próprio para a zona euro.
1. Daqui a dias não escasseará a polémica, o confronto de opiniões, o jogo cruzado de tentativas de imputação de responsabilidades. A democracia é o regime da palavra livre. Mas agora ainda é o tempo do silêncio, ou pelo menos das considerações pronunciadas com o único propósito de salvaguardar a dignidade do Estado e o respeito pelas vítimas. Foi assim que interpretei o comportamento do Presidente da República, que tenho por exemplar. Esteve, em toda a plenitude, à altura das suas responsabilidades, nomeadamente quando, no auge da tragédia, afirmou que se estava fazer tudo o que naquelas circunstâncias se podia levar a cabo. Era esse o seu dever naquela ocasião. Ninguém compreenderia que o Presidente da República manifestasse dúvidas, insinuasse suspeitas ou indiciasse críticas numa fase crucial do combate ao incêndio e com o país em estado de choque diante das revelações e das imagens que as televisões transmitiam.
Os partidos políticos manifestaram uma disposição de princípio para a realização de uma investigação em torno do que ocorreu no passado fim-de-semana em Pedrogão Grande. O Primeiro-Ministro pediu já explicações concretas sobre o sucedido. Esperemos que seja possível um debate sério, desprovido de sectarismo e unicamente voltado para o apuramento da verdade.
2. De França chegam-nos sinais contraditórios. Uns, prenunciadores de auspiciosas mudanças, outros, portadores de inquietantes receios. Tal como se previa, o novo partido fundado por Emmanuel Macron obteve uma ampla maioria parlamentar, para o que contribuiu o carácter singular quer do sistema político, quer do sistema eleitoral franceses. Macron obteve na primeira volta das presidenciais 24% dos votos e dispõe agora de hegemonia quase absoluta no espaço político-institucional gaulês. O elevadíssimo nível de abstenção, verificado sobretudo na segunda volta das eleições legislativas, não pode ser desvalorizado, tanto mais que ele não se distribuiu igualmente pelos vários segmentos sociais. A abstenção chegou aos 80% nas circunscrições habitadas predominantemente pelas classes desfavorecidas e não atingiu valores muito elevados nas zonas caracterizadas por uma maior prosperidade económica e social.
Não estando em causa a legitimidade do novo Presidente e da sua ampla maioria parlamentar, haverá que reconhecer a permanência de um elevado grau de cepticismo popular face ao novo poder vigente. É verdade que essa desconfiança é ainda muito maior em relação às grandes formações políticas partidárias tradicionais que conformaram o espaço político francês nas últimas décadas. A extraordinária débâcle do Partido Socialista e a regressão significativa da direita democrática exprimem uma desafectação pelas experiências presidenciais mais recentes que não deixa de surpreender pela sua amplitude. Acresce a isto que, quer num caso, quer noutro, o que resta em termos de representação parlamentar está longe de revelar um grau mínimo de unidade interna. Os socialistas dividem-se entre um grupo mais centrista, adepto do diálogo com o novo Presidente, e um sector mais esquerdista, que aposta numa oposição declarada à nova maioria; os parlamentares da direita dividem-se igualmente entre uma ala empenhada numa aproximação a Emmanuel Macron e uma outra que pretende refundar esse espaço político em torno de um discurso de carácter mais nacionalista e identitário.
Por seu lado, os pólos extremistas liderados por Jean-Luc Melenchón, à esquerda, e por Marine Le Pen, à direita, tendo obtido resultados relativamente medíocres face às expectativas criadas no decorrer da campanha presidencial, não deixaram de eleger deputados, no contexto de um sistema eleitoral fortemente adverso, garantindo assim a presença dos seus principais tenores na Assembleia Nacional. Uns e outros procurarão articular a acção parlamentar com uma contestação de natureza extraparlamentar, no intuito de condicionar a capacidade reformadora que Macron procurará exibir nos tempos mais próximos.
O próprio Presidente da República origina apreciações algo contraditórias. Por um lado impõe-se categoricamente pela coragem com que afirma, entre outras coisas, as suas posições pró-europeístas e a sua vontade de romper com os anquilosados reflexos corporativos que quase paralisam a sociedade francesa; por outro lado, uma certa tendência para a exaltação de um populismo tecnocrático e para a constante manifestação de um narcisismo adâmico geram um sentimento de alguma repugnância. Macron é provavelmente uma personagem política em construção, o que nos permite alimentar a expectativa de que o seu lado mais luminoso venha a permanecer sobre a dimensão menos abonatória. Este terramoto político francês pode vir a revelar-se aliás de importância decisiva para o futuro da União Europeia. Não será por acaso que Angela Merkel admitiu esta semana a possibilidade de criação de um orçamento próprio para a zona euro. A existência de um governo que une uma parte significativa do centro-esquerda e do centro-direita em França, apesar de alguns perigos que comporta, tem esse condão inquestionável de reformular alguns dos principais dados em que tem vindo a assentar a vida política europeia. Que a Alemanha dê sinais de o perceber quase instantaneamente não deixa de ser reconfortante.