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Tribunal considera que não se pode obrigar um menor casado a ir à escola

Rapazes e raparigas entre 16 e 18 anos emancipados pelo casamento deixam de estar sujeitos a medidas de promoção e protecção. Mas há quem questione: "Como é que um tribunal decide que alguém não pode ser obrigado a fazer a escolaridade obrigatória?"

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Paulo Pimenta

A rapariga, de 16 anos, frequentava o 7.º ano. Casou-se e deixou de aparecer nas aulas. A família argumentou que, pela tradição cigana, não podia voltar à escola. O Ministério Público (MP) quis forçar o regresso. O Tribunal de Matosinhos entendeu que ninguém pode obrigar um menor emancipado pelo casamento e reger a sua vida de forma contrária à sua vontade. A Relação do Porto deu-lhe razão. 

A matéria plasmada no acórdão do Tribunal da Relação, datado de 18 de Maio, é complexa. Convoca a Constituição da República, o Código Civil, a Lei de Bases do Sistema Educativo, a Lei de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. O que deve prevalecer?

O MP descreve uma “situação de perigo para a educação, a formação e o desenvolvimento integral” daquela rapariga. E argumenta que o sistema de protecção deverá ser accionado sempre que os pais ou o representante legal ponham em perigo crianças ou jovens, ou quando haja perigo resultante da acção de outros ou dos próprios. Fazendo “uma interpretação restritiva” da lei, o Tribunal de Matosinhos considerou que a legitimidade para intervir terminara quando a jovem se casara.

A idade mínima de casamento, em Portugal, é 16 anos. Até aos 18, a conservatória do registo civil exige uma autorização dos pais ou dos representantes legais. Conforme o Código Civil, ao casar-se, um menor fica emancipado, o que quer dizer que adquire “plena capacidade de exercício de direitos”.

“Sendo certo que o menor emancipado continua sujeito à escolaridade obrigatória, a plena capacidade jurídica de que goza estando livremente habilitado a reger a sua pessoa implica que deixe de ser legítimo tanto aos seus pais (porque cessam as responsabilidades parentais) como ao Estado, através do sistema de protecção, intervir no sentido de orientar a vida do jovem de forma contrária à sua vontade”, concluiu o Tribunal de Matosinhos, ao arquivar o processo.

A Lei de Promoção e Protecção não distingue jovens emancipados de não emancipados. Também estes últimos “têm direito à protecção que o Estado lhes oferece”, sustentou o MP, no recurso para a Relação. Apesar de emancipada, a rapariga está em idade de escolaridade obrigatória. Cabe-lhe fazer a sua matrícula. E há suspeita de outros perigos. "Um casamento precoce não será ele próprio um factor de risco?”

Para o MP, não havia razão para não instruir o processo. Quanto muito, o tribunal poderia equiparar os jovens emancipados aos jovens com menos de 21 anos que são abrangidos pela Lei de Promoção e Protecção, caso o queiram, quando a intervenção é iniciada antes dos 18 anos. Abria assim a possibilidade de se aplicar uma medida de “apoio para autonomia de vida”, que daria à rapariga acesso a programas de formação, salvaguardando-a de "uma previsível dependência do marido”.

Tradição cigana vs lei

A Relação do Porto discordou do MP. Considerou que, sendo um menor emancipado equiparado a um maior, “não se lhe aplicam as medidas de promoção e protecção previstas para os menores ou para os maiores entre os 18 e os 21 que peçam a sua continuação”. “Na verdade, não estando pendente qualquer medida, não se coloca a possibilidade da sua continuação.”

No acórdão, os desembargadores Teles de Menezes, Mário Fernandes e Leonel Serôdio citam um outro, da Relação de Lisboa, de 20 de Março de 2012, segundo o qual as tradições ciganas não se sobrepõem ao imperativo de frequentar o ensino até ao fim da escolaridade obrigatória.

Naquele caso, uma rapariga e os pais justificaram o abandono escolar com a primeira menstruação. Disseram que, pela cultura cigana, a menina tinha de deixar a escola para preservar a “pureza”. A primeira instância achou que tal ensejo era legítimo. E a Relação que não. “As realidades sociológicas não são estáticas e não é aceitável que a justificação para a menor deixar de frequentar o ensino obrigatório seja a preservação da sua “pureza”, escreveu o desembargador Afonso Henrique Cabral Ferreira. “Há que explicar aos pais da menor que uma coisa não exclui a outra e que a escolaridade obrigatória visa defender as crianças e os jovens, evitando que entrem prematuramente no mercado de trabalho com prejuízo para ao seu normal desenvolvimento psico-social. Esse trabalho pedagógico deve ser exercido junto dos pais da menor.”

A decisão da Relação de Lisboa já foi apresentada no Centro de Estudos Judiciários como exemplar. Mas a situação que esteve agora em análise no Porto é diferente, dizem os desembargadores. “No nosso caso, a menor deixou de o ser para efeitos legais, passando a ser equiparada a maior pela emancipação, pelo que, sendo livre de gerir a sua pessoa, não pode ser através de um processo de promoção e protecção que se lhe imporá a frequência da escola.”

Decisão polémica

"Como é que um tribunal decide que alguém não pode ser obrigado a fazer a escolaridade obrigatória?", questiona Vanessa Matos, da Ribaltambição — Associação para a Igualdade de Género nas Comunidades Ciganas. "A que futuro poderá aspirar uma rapariga que nem sequer concluiu o 7.º ano? As feiras estão a acabar."

Para Maria José Casa-Nova, coordenadora do Núcleo de Educação para os Direitos Humanos da Universidade do Minho, o que está em causa não é a Lei de Promoção e Protecção, é o “acesso e a universalidade da educação”. “O significativo não é a relevância da emancipação por via do casamento, mas a relevância do acesso ao conhecimento escolarmente transmitido, potenciando a formação de cidadãs e cidadãos críticos e humanistas”, reage.

“A escolaridade obrigatória não foi alargada para os 18 anos por a infância ser a idade da frequência escolar”, lembra Manuel Sarmento, investigador do Instituto de Estudos da Criança. “Isso teve a ver com um juízo de outra natureza, que aliás se consensualizou na Assembleia da República. É que a educação necessária a qualquer cidadão numa sociedade moderna corresponde a 12 anos de escolaridade, ou 18 anos de idade. Não se está na escola até aos 18 anos porque se é criança. Está-se na escola até aos 18 anos por necessidade social.”

As leis têm um carácter universal. “A escolaridade obrigatória aplica-se na cidade e no campo, a meninos e a meninas, de etnia dominante ou minoritária”, sublinha aquele sociólogo. Esse universalismo, diz ainda, é que permite uma efectiva igualdade de direitos. Por vezes há choques. Mas, sublinha, os choques resolvem-se "através do sensibilização, da intervenção social ou pedagógica". 

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