O livro do riso e do desconforto
O trabalho Paul Beatty em O Vendido é invulgar em escritores afro-americanos. Ri da condição negra enquanto toca em feridas e traumas antigos. Um atrevido e corajoso olhar satírico sobre a identidade que cobre segregação, classe e raça. O romance valeu-lhe o Booker.
Um homem é levado para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, em Washington, a capital do país, acusado “de um crime odioso” e pensa na sua condição e na condição no tempo em que vive. “Basta um dia de passeio por Georgetown. Uma caminhada lenta em frente à Casa Branca, à Phoenix House, à Blair House e à sala de chuto local para a mensagem se tornar abundantemente clara. Seja na Roma Antiga ou na América moderna: ou somos cidadãos ou escravos.”
Pouco depois pede lume a uma mulher-polícia e dá “a passa mais lendária alguma vez dada na história a erva”. Continuamos na cabeça do narrador. “Liguem a todos os que apelaram a Quinta Emenda, vítimas de discriminação racial, de recusa de direito ao aborto, que queimaram bandeiras, e digam-lhes que estou a apanhar uma moca no mais alto Tribunal da nação”. É o mesmo homem que perante a clássica pergunta, é culpado ou inocente, responde: “meretíssimo, declaro-me humano”.
Ele é o narrador de O Vendido, romance onde Paul Beaty satiriza a questão da raça a partir de estereótipos que vão alimentado aquele que é um dos grandes complexos nacionais e enfrentando o preconceito e o interdito no modo como eles se manifestam, sobretudo, na linguagem. Tudo sem que esta conversa tão antiga quanto a América pareça sempre a mesma conversa. Narrado na primeira pessoa, o romance é um retrato fulgurante e íntimo que é tão mais dilacerante à medida que o olhar sobre si mesmo e a comunidade a que se pertence, “super-ego colectivo”, passa a ser o de um colectivo que recusa olhar-se de frente: um país e a humanidade enquanto conjunto diverso.
Do narrador sabemos apenas o apelido: Me. Nome intraduzível como dificilmente passarão de modo eficaz para outra língua expressões que carregam a marca da cultura e do sítio a que pertencem, como negro, a famosa N-word, inominável, palavra que é o símbolo máximo do interdito racial e que em português não é o mesmo que preto ou escarumba (opção da tradução). Me é um eu, é negro mas quando em tribunal responde que é humano expõe, logo no início do romance, o desafio a que Beatty se propõe. Este não será um romance típico sobre culpa, mas uma tentativa de actualizar um discurso sobre raça com base numa prática menos comum aos escritores afro-americanos do que aos judeus americanos: rir de si próprios. Por isso também, quando Me responde em tribunal que é humano, ele diz que não é negro, não é branco, mas antes a diversidade com todas as culpas e falhas.
Eis, pois, Me, só sabemos o seu apelido. Californiano dono de uma propriedade rural nos subúrbios pobres de Los Angeles onde cultiva fruta e canabis, licenciado em “ciências animais”, filho de um “cientista social de renome”, praticante de surf, tem uma paixão antiga por Marpessa, condutora de um autocarro suburbano. Os seus amigos chamam-lhe o Vendido por ter poucas certezas sobre a sua condição afro-americana e lhe passarem ao lado urgências como as de adequar títulos de clássicos ou mesmo reescrevê-los para ficaram mais conformes a uma certa ideia de correcção étnica. Assim, por exemplo, Huckleberry Finn, de Mark Twain, passa a intitular-se Viagens Intelectuais e Espirituais do Afro-Amercano Jim e do Seu Jovem Protegido, o Irmão Branco Hucleberry Finn, enquanto Partem em Busca da Unidade Familiar Negra Perdida.
O autor de O Vendido chama-se Paul Beatty e em 2015, numa entrevista à Paris Review declarou que este é um romance que questiona a nossa individualidade e responsabilidade”. E por “nossa” queria dizer a de cada cidadão americano nessa velha conversa sobre raça. Um ano depois este californiano natural de Los Angeles, onde nasceu em 1962, ganhou o National Book Circle Critics Award e tornou-se nada mais do que o primeiro escritor americano a vencer o Man Booker Prize com esse mesmo romance. Amanda Foreman, que presidiu ao júri, elogiou-lhe o risco ao decidir falar de uma questão ultra-sensível recorrendo à transgressão da norma. “A ficção não deve ser confortável”, afirmou Foreman, considerando O Vendido um romance actual que surgiu em paparelo ao movimento Black Lives Matter, responsável pelo recuperar de muitos dos argiumento do Direitos Civis das décadas de cinquenta e sessenta nos Estados Unidos. Beatty satiriza-os, não os refutando.
Como? Voltemos a Me. Ele tem um objetivo, voltar a pôr Dickens no mapa dos Estados Unidos, porque Dickens, comunidade de gueto nos arredores do Sul de Los Angeles onde nasceu e cresceu, foi entretanto extinta. “Fundada em 1868, Dickens, à semelhança da maioria das cidades da Califórnia, a exceção de Irvine, que tinha sido estabelecida como viveiro para republicanos brancos, feios, gordos e estupidos, e para chihuahuas e refugiados do leste asiático que os adoram, começou por ser uma comunidade. A carta da cidade original estipulava que ‘Dickens sera livre de chineses, espanhóis de todos os tons, dialetos e chapéus, franceses, ruivos, citadinos e judeus sem qualificações’. No entanto os fundadores, com a sua sabedoria um tanto limitada, também decretaram que os 200 hectares que ladeavam o canal seriam permanentemente reservados para uma coisa chamada ‘agricultura residencial’.”
Quem vivia em Dickens vive agora sem identidade e Me está apostado a restabelecer não apenas os limites geográficos dessa cidade maldita, marcada pelo estigma da pobreza e criminalidade de um gueto negro típico, mas em devolver a todos os seus ex-habitantes um lugar onde se possam sentir cidadãos na sua plenitude. Traça um plano: reintroduzir a segregação e a escravatura em Dickens, começando pela escola, “o crime odioso”. Somos espectadores da sua excêntrica corrente de penamentos, com Beatty a ser assertivo na mensagem séria que quer passar entre os esboçar de sorrisos “Compreendo que a única altura em que os negros não se sentem culpados é quando fazem realmente algo errado, porque isso nos livra da dissonância cognitiva de sermos negros e inocentes, e, de certa forma, a perspectiva de ir para a cadeia torna-se um alívio. Da mesma forma que representar estereótipos negros é um alívio, votar no Partido Republicano é um alívio, casar com uma pessoa branca é um alívio – ainda que temporário.”
O humor como vingança
Paul Beatty levou cinco anos a escrever O Vendido, e parte desse tempo foi a limar a escrita de modo a tornar o obra cáustica, hilariante, incómoda, e em permanetente interpelação aos leitores. Nisso assemelha-lhe ao trabalho de autores judeus de que se tem, aliás, confessado grande admirador. Joseph Heller, Saul Bellow, Kurt Vonnegut ou Philip Roth. Este O Vendido pode ser tão incómodo para a comunidade afro-americana (entenda-se aqui no sentido mais lato) como O Complexo de Portnoy (D. Quixote) foi no final da década de sessenta para os judeus americanos. Num caso como noutro, é de dentro que surge o pôr em questão, e num como noutro, a partir do riso sobre si mesmos. Foi também com estes escritores judeus que Beatty se formou como leitor e são eles em parte os responsáveis por ter partido para um dos trabalhos mais originais e completos, o estudo do humor afro-americano: Hokum: An Anthology of African-American Humor. Publicado em 2006, depois de Beatty ter no mercado dois livros de poesia e dois romances, o livro traz alguns dos melhores exemplos do humor enquanto ferramenta de integração social, alma política, artística, desde a gíria de rua, à música, poesia, um sermão de rádio hilariante, onde é permitido dar gargalhadas com cenas de escravatura ou religião. “Os afro-americanos como qualquer outro americano são pessoas zangadas e com egos frágeis. O humor é a vingança. Por vezes rimos para não chorar. Por vezes rimos para evitar os tiros… os negros estão zangados com toda a gente (…) porque se vêem forçados a estar sempre na linha de fogo de alguém”, escreve Paul Beatty nesse livro onde a identidade negra não surge isolada mas, mais uma vez, integrante de um contexto global. Essa é uma ideia que atravessa toda a obra de Beatty e também o seu discurso. Recentemente, num festival de literatura em Sidney, na Austrália, uma jornalista famoso naquele país, perguntou-lhe como tinha aprendido a ser negro. Beatty não gostou nem da pergunta nem do tom e respondeu “Ask yourself the fucking question man… pense nela só um segundo. Você aprendeu a ser branco?”
Beatty levou para O Vendido essa carga confrontacional, mas fê-lo de um modo menos tenso. Me, pedrado ou enquanto come donuts, cultiva melancias e seduz Marpessa, é a caricatura ideal do desenquadrado que permite ao escritor pôr tudo em questão. Me não pensa ter-se construído em função da sua cor. “Não, a pouca inspiração que tenho na vida não vem de um sentimento de orgulho racial. Vem do mesmo anseio milenar que produziu grandes presidentes e grandes fingidores, capitães da indústria e capitães do futebol: aquele desejo edipiano que leva os homens a fazerem todo o tipo de merdas que preferíamos não fazer, como prestar provas para uma equipa de basquetebol e andar ao murro com o puto da casa do lado, porque nesta família não começamos merdas, mas podem bem crer que as terminamos. Falo apenas da necessidade mais básica, a necessidade de um filho agradar ao seu pai.”
A relação edipiana é forte, a personagem do pai tem traços absolutamente surreais, mas Beatty tem recusado falar deste livro como centrado nessa eterna questão. Há outra figura, tão ou mais imperativa, Hominy, antiga estrela de Hollywood, de Dickens como Me e o pai de Me, e que caiu no esquecimento e no degredo quando Dickens desapareceu. Hominy oferece-se para trabalhar como escravo na quinta de Me e com ele que se dá o reinício da escravatura tradicional nos subúrbios de Los Angeles. Hominy parece esquecido do seu passado e quer começar do zero no seu lugar de sempre. “… ele, ao contrário da América, virou a página. É esse o problema da História, gostamos de pensar que é um livro – que podemos virar a página e seguir em frente. Mas a História não é o papel em que é impressa. É a memória, a memória é o tempo, as emoções e as canções. A História são as coisas que ficam connosco.”
E andar de autocarro pode servir para repor memórias, refazer relações. O Autocarro enquanto metáfora da América, sobretudo. Nem branca nem preta, mas pobre. Mexicana, porque mexicano é adjectivo para todos os latinos pobres. Esses são os novos “pretos”, como se lê aqui preto ou negro já não tem a ver com cor mas com classe e essa é a nova escravatura. Hominy não tem a memória dos barcos de escravos. Me ouviu muitas vezes o pai dizer-lhe que essa memória é para sempre. Nada neste livro é simples. Em causa está toda a tacanhez de pensamento. A que diz, por exemplo, que um negro vive melhor na América do que em África e que, portanto, queixa-se de quê? Me, “o esclavagista dos tempos modernos” que se recusa a praticar a “maldade e a crueldade” de outros tempos arrepia-se com isso. “Duvido seriamente que um antepassado dos navios de escravos, naqueles momentos entre ser violado e espancado, estivesse enterrado nas próprias fezes até aos joelhos a pensar que, no final de contas, as gerações de assassinatos, de dor e sofrimento insuportáveis, de angústia mental e de doenças descontroladas iam valer a pena porque um dia o meu tetraneto vai ter Wi-Fi, por muito lento e intermitente que seja o sinal.”
Nessa altura não foi opção. Quando em 1955 a costureira Rosa Parks se recusou a ceder o seu lugar no autocarro a um branco, a América branca, como lhe chama Beatty, sentiu um gesto como uma bofetada. Rosa arriscou, fez uma opção que lhe podia trazer consequências. Tornou-se única. É o mesmo que Beatty pede aos seus alunos de escrita criativa na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Sejam únicos. Ele tentou mais uma vez, ao quarto romance não fazer sempre a mesma conversa quando a conversa é o racismo. E conseguiu. Mas não fez só isso, fez um livro que nem todos entenderão, mas que traz novos argumentos para uma discussão antiga e questionando as relações entre poder e segregação, qualquer tipo de poder, qualquer espécie de segregação.