O turismo total
A cidade turistificada está a dar lugar a uma cidade universal onde somos todos turistas, mesmo no sítio onde vivemos.
Uma nova utopia chamada turismo atravessa o país de norte e sul e realiza, no plano da política cultural, uma sutura imperativa: turismo & cultura. Ainda na semana passada, numa conferência internacional em Évora, ouvi a entidade regional do turismo do Alentejo falar da cultura com um fervor instrumental que conhecemos dos tempos sinistros em que eram os ministérios ditos da propaganda a ocupar-se dela e a reclamá-la com legítima — ou, pelo menos, legitimada — autoridade. A lei da reversibilidade funciona aqui sem falhas: numa época em que a cultura se tornou uma noção expansiva e até obesa (funcionando muitas vezes no lugar da política), todo o turismo é cultural e toda a cultura serve a estratégia turística. O turismo parodia hoje as ideologias da mobilização total. Peter Sloterdijk formulou esta ideia, dizendo que até o extremismo releva hoje do turismo. No contexto do turismo total – essa nova utopia -, o conceito de “espaços turistificados”, usado pelos geógrafos, alargou-se e quase não conhece fronteiras. É tanto a cidade histórica e monumental como o mundo rural, para onde se viaja em busca do país dos arquétipos. Trata-se de uma ilusão, pois até os “arquétipos” do mundo rural e local se disseminaram e se reproduziram na cidade universal. Um exemplo: o dia da espiga, uma celebração pagã que ocorre na Quinta-feira de Ascensão (consiste em colher espigas de vários cereais, flores campestres e um ramo de oliveira, formando um ramo), é um ritual que quase desapareceu dos seus lugares próprios e foi transferido para a cidade, onde aparecem nesse dia, à venda, os ditos ramos. Este exemplo é um modelo abreviado de uma exportação promovida pelo turismo: as diferenças e os produtos locais que dantes eram a marca de distâncias e distinções exóticas tornaram-se exportáveis e transmissíveis. É por isso muito plausível que possamos saborear em Hamburgo o melhor pastel de nata de sempre, e comamos a melhor pizza italiana em Berlim, num restaurante turco. Para partir, já não precisamos de sair: esta é uma conclusão a que temos de chegar, sobretudo quando vivemos numa cidade com grande densidade de turismo. No contexto do turismo total, a utopia já não é um lugar estático e imóvel: é a cidade universal, onde se realizou a coincidência entre viver e viajar e onde não existe diferença perceptível entre os residentes da cidade e os seus visitantes. Há um processo de monumentalização levado a cabo pelo turismo e acabamos por olhar a nossa própria cidade com os olhos do turista que a monumentaliza, tal como o alentejano que voltava as costas ao mar e à paisagem que era para ele completamente hostil fala hoje encantado, usando uma designação inventada há algumas décadas pelo turismo, do seu “litoral alentejano”. A crítica do turismo baseada nos direitos dos autóctones vai perder em breve o seu fundamento. A razão do autóctone vai dissolver-se no turismo total. O lugar crítico da mobilização total, o que há hoje de mais parecido a um posto militar em desordem são os aeroportos. Uma personagem trágica do “alegre apocalipse” vienense, Otto Weininger, escreveu num aforismo que de uma estação de comboio não se pode partir para a liberdade. Só um pessimismo radical ou a visão dos comboios cheios de gente “como piolhos” que chegavam a Auschwitz (mas Weininger, conhecido, aliás, por ter elaborado, num livro intitulado Sexo e Carácter, uma exaltada teoria anti-semita e misógina, suicidou-se em 1903, com 23 anos, na casa onde também tinha morrido Beethoven) pode dizer tal coisa de uma estação de comboio. Talvez a sentença se tenha tornado verdadeira para designar os aeroportos na época do turismo total.