Fantasmas do que já fomos
Há uma vertigem nas personagens, uma desfaçatez nos planos, que se tornaram coisas raras, inéditas, no cinema que hoje temos. E que fazem de A Missão um fantasma do que já fomos.
Walter Hill não é Tod Browning, Walter Hill não é James Whale. Também por isso A Missão, em que Sigourney Weaver, médica louca, se vinga dando um sexo feminino a Michelle Rodriguez (“i don’t look the same, i shaved and some other stuff”), paira à deriva. Mas tal como aquele cinema já desaparecido, é irredutível a qualquer esforço de tradução. A série B, e a Z e etc, o território de A Missão, foi isso, câmara de eco onde ressoavam fantasmas, medos que eram experimentados de forma “pura”, brutal, alucinada.
“Foi”, precisamente: já não há “coisas” destas no “cinema”, se calhar porque já não há cineastas desses, certamente porque já não há espectadores capazes. Para uma frontalidade assim, para investir desta forma na suspensão da descrença, é preciso poesia e ferocidade — ou um Whale ou um Browning... — e já poucos de nós, realizadores, espectadores, têm matéria para aventuras na escuridão.
Preocupados que estão, preocupados que estamos, em não magoar e em não sermos magoados. Mas o filme de Walter Hill é a recusa do cinema como SPA emocional. É um pacto com a escuridão que nos habita — a relação com os monstros de Browning e Whale faz-se por aí, não por qualquer jogo de citação cinéfila, mesmo se é irresistível ver em Sigourney Weaver, de braços amarrados que não aprisionam a sua loucura, antes a exponenciam, uma mão em direcção ao Lon Chaney do The Unknown de Browning, filme de 1927.
Há uma vertigem nas personagens, uma desfaçatez nos planos, que se tornaram coisas raras, inéditas, e que, mesmo que Hill as trabalhe mais como “industrial” do que como “artista”, ou que A Missão seja menos austero do que O Profissional (1978) e mais vacilante como Estrada de Fogo (1984), não deixam de nos assombrar: fantasmas do que já fomos.