A desforra dos “cidadãos de nenhum lugar”
É uma Theresa May sem peso negocial que se apresenta agora perante Bruxelas.
Na passada quarta-feira sugeri que a rainha da Brexitânia, Theresa May, ia nua e que a única questão era saber quando alguém iria reparar. A resposta chegou na madrugada do dia seguinte. Os resultados eleitorais comprovaram a perda de maioria absoluta pelos conservadores britânicos, a partir de agora dependentes dos sectários protestantes unionistas da Irlanda do Norte. É uma Theresa May sem peso negocial que se apresenta agora perante Bruxelas, perante o parlamento britânico e até perante Belfast, ou melhor, perante os bairros protestantes da capital norte-irlandesa.
O governo britânico, com o contra-relógio do “Brexit” a contar inexoravelmente, desejava ir para as negociações em Bruxelas com uma braçada de exigências incompatíveis entre si. Por um lado, dizia querer uma saída radical da UE — a não ser quando lhe dava jeito um acordo feito à medida para benefício de Gibraltar, para a Irlanda do Norte e para manter os refugiados encurralados do outro lado do Canal da Mancha, em Calais, na França. Por outro lado, queria sair do mercado único e da união aduaneira europeia — a não ser quando se tratasse de manter acesso privilegiado ao mercado único para as suas exportações. Desejava acabar com a liberdade de circulação, mas sem atrapalhar a vida dos reformados britânicos no Sul da Europa, que têm acesso aos sistemas nacionais de saúde locais. Não obedecer a sentenças de juízes europeus, mas manter os “passaportes bancários” para a finança londrina. May e os seus ministros gostariam evidentemente de manter a lucrativa indústria de compensações da zona euro, que vale quase um bilião (não é engano: um milhão de milhões) de euros por dia... situada fora da zona euro. A certa altura, sugeriram até que não haveria necessidade de retirar a Agência Bancária Europeia e a Agência Europeia do Medicamento do território britânico quando este saísse da UE. Sempre foi fantasia pensar que tais metas negociais se pudessem atingir em Bruxelas ou qualquer outra capital do continente.
A novidade agora é que elas também não se podem atingir no Parlamento britânico. Neste momento não há maioria em Londres para as duas opções negociadas possíveis: uma saída radical, mas extremamente danosa para a economia e para os empregos britânicos, ou uma saída suave, que deixará o Reino Unido na condição de país-satélite, com acesso ao mercado da UE mas sem direito de voto na definição das suas regras. Para um país que vinha da situação diametralmente oposta (dentro da UE, mas com todas as exceções que foi pedindo e lhe foram sempre concedendo), nenhuma destas opções parece aceitável. Só que chegar ao fim do prazo — 30 de março de 2019 — sem decidir por nenhuma delas é um salto na incerteza jurídica, no caos económico e na instabilidade social.
Não admira, portanto, que a partir do primeiro “o rei vai nu!” já haja de repente muita gente a dizer o que antes calava. Mas a queda de Theresa May começou muito antes, quando tentou cavalgar a onda nacional-populista acusando os britânicos que se considerassem “cidadãos do mundo” de serem “cidadãos de nenhum lugar”. Esta aposta política pode ter parecido taticamente compensadora, mas — num país desenvolvido, com uma juventude cada vez mais educada e internacionalizada — constituiu um erro estratégico. O referendo tinha, em certa medida, criado a imagem de um eleitorado dividido entre as linhas anti-austeridade e pró-europeia. As eleições permitiram voltar a juntar essas duas linhas contra Theresa May, com Jeremy Corbyn defendendo vigorosamente a linha anti-austeridade, mas não hostilizando a linha pró-europeia, de forma a que os “cidadãos de nenhum lugar” pudessem também tirar a sua desforra e, através do voto trabalhista, meter um pau na engrenagem do “Brexit” mais extremista.
E essa é a lição que, para lá do “Brexit”, serve também à política no resto do continente: as nossas sociedades esperam por propostas políticas que sejam anti-austeritárias sem deixarem de ser pró-europeias.
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