Balsa, uma cidade romana à beira da ria Formosa reduzida a cacos
Um holandês comprou, por 1,2 milhões de euros, uma quinta onde antes estavam os subúrbios da antiga cidade de Balsa. Arrasou tudo e a obra acabou embargada. O problema é que tarda a protecção - e um estudo aprofundado - da antiga urbe
A história da antiga cidade romana, na Luz de Tavira - que no século II chegou a ter uma área quase o dobro da de Lisboa - contém os elementos para o guião de um filme que poderia chamar-se “Balsa furada”. Vivendas de milhões escondem, debaixo dos caboucos e dos relvados dos jardins, vestígios de uma civilização que chegou a cunhar moeda e construiu um sistema político-administrativo a evidenciar uma grande urbe, junto à ria Formosa. À época, Olisipo (Lisboa) ocupava 26 hectares, Balsa estendia-se por 47 hectares.
A casa de Martijn Kleijwegt, entretanto demolida, é o último caso conhecido sobre a forma como os poderes públicos ignoram (ou fingem não saber) aquilo que se passa em relação à destruição do património histórico. O holandês, de 62 anos, comprou dois prédios mistos, numa propriedade com mais de cinco hectares. Mandou vir uma máquina e arrasou as edificações. A propriedade, situada junto ao empreendimento turístico Pedras d´El Rei, fazia parte dos subúrbios da antiga Balsa, cidade portuária do litoral onde se escondem construções emblemáticas – tais como circo, teatro, piscinas e tanques de salga de peixe.
A defesa do património nos casos onde o turismo chegou para arrasar é ainda vista como um empecilho. O projecto de “remodelação e reabilitação” da casa de Kleijwegt foi aprovado pela câmara de Tavira, em 27 de Outubro de 2016, sem que fosse pedido o parecer à Direcção Regional da Cultura do Algarve (DRCA) nem exigido acompanhamento arqueológico, como seria expectável dada a evidência dos achados arqueológicos do local. A escritura da aquisição da propriedade foi feita num cartório de Olhão, no dia 11 de Agosto de 2016, tendo sido declarado 1,2 milhões pela compra. O presidente da Câmara, Jorge Botelho, questionado sobre o motivo pelo qual não foram consultadas as entidades ligadas ao património cultural, responde: “Não foi pedido parecer à Cultura porque a lei não obriga – o imóvel fica fora da Zona Especial de Protecção (ZEP)”, agora em fase de apreciação pública para que seja alargada.
De acordo com o Plano Director Municipal (PDM), o imóvel não poderia ser demolido, como veio a acontecer. “Balsa é uma mais-valia para a região e para o país”, diz Botelho, defendendo que o sítio deve tornar-se num “Centro Interpretativo, de grande relevância cultural”.
Mas uma parte dos testemunhos do passado já desapareceu por causa das intervenções agrícolas na Quinta Torre d’Aires e pela ocupação urbanística do solo. “Os cacos de cerâmica encontravam-se espalhados, à mão cheia pelo terreno”, conta a arqueóloga Cristina Garcia, que fez prospecções no terreno, produzindo em 1989 um relatório de 40 páginas com a proposta de classificação sítio. “O melhor e mais completo núcleo de cerâmica romana que existe no Museu Nacional de Arqueologia foi de Balsa para Lisboa”, acrescenta o investigador Luís Fraga da Silva. De acordo com o levantamento feito por este geógrafo, autor do livro Balsa, cidade perdida, a antiga urbe “guarda ainda numerosos vestígios da sua ocupação original”.
A cidadã francesa Bénédicte Travaux, residente em Tavira e membro da associação “Salvem Balsa”, duvida que haja uma verdadeira vontade por parte da autarquia de defender este património. “Vou às reuniões das assembleias municipais, questiono os atentados ao património, respondem sempre com um ar de quem não sabe de nada do que se passa à sua volta”, critica. Porém, reconhece que quando as denúncias ganham espaço na opinião pública, as coisas mudam de figura. Foi o que aconteceu com a oposição a um empreendimento agrícola na Quinta Torre d´Aires. A Direcção Regional da Cultura do Algarve (DRCA) pediu o embargo dos trabalhos para preservar o sítio arqueológico e a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) determinou a paragem da exploração.
Na situação mais recente, relacionada com a propriedade de Kleijwegt, a câmara declarou o embargo das obras no dia 24 de Maio com base na informação da fiscalização municipal do dia 17 de Março. Porém, o promotor ainda não foi notificado do auto de contra-ordenação que alega violação do PDM. “O processo vai regressar à estaca zero em termos de licenciamento”, diz Jorge Botelho, enfatizando: “Estão proibidas novas construções na zona, só é autorizado a reabilitação do existente”, sublinha. A ordem da autarquia só aconteceu depois de várias queixas e do Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente da GNR (SEPNA) se ter deslocado ao local, tendo lavrado no acto que não encontrou quaisquer vestígios arqueológicos.
O que este cidadão holandês fez, comenta Luís Fraga da Silva, “não difere da atitude de outros promotores da zona – arrasaram tudo o que lhes pareceu poder vir a criar obstáculos”. O investigador, especialista em urbanismo romano, denuncia: “Nas feiras de velharias encontrei à venda baldes de moedas retiradas de Balsa”. O saque ao património, ao longo dos tempos, está ligado à história local e algumas peças chegaram a ser vendidas em antiquários de Portugal e de Espanha.
A antiga urbe romana existiu na faixa litoral do concelho de Tavira nos terrenos hoje designados por Torre d'Aires, Antas e Arroio. O actual empreendimento turístico Pedras d´El Rei, Luz, Rato e Pinheiro seriam os subúrbios. As velhas casas rurais, dispersas pelas quintas, tiveram o mesmo destino de outros sítios históricos da região – transformaram-se em mansões, com grandes jardins e piscinas. Uma das moradias de Arroio, que sobressai na paisagem, pertence a um ex-dirigente desportivo, tendo estado à venda por sete milhões de euros.
Piscina romana cortada
A causa próxima que fez virar, de novo, as atenções para a causa de Balsa, foi a instalação de uma grande superfície de estufas para a produção de framboesas, há cerca de dois anos, na Quinta Torre d´Aires. Mal se iniciaram os trabalhos na quinta, com uma área de 43 hectares, surgiu a contestação ao “mar de plástico” que estava a ser montado, mesmo junto à ria Formosa. Os responsáveis pelo empreendimento – proprietários da Surexport, uma das principais empresas espanholas na produção de frutos vermelhos - obtiveram autorização do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), do qual depende o Parque Natural da Ria Formosa, mas não pediram o parecer à direcção à DRCA. Por isso, a obra foi embargada e as estruturas já foram desmontadas.
A Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), entretanto, abriu um procedimento para que a Zona Especial de Protecção (ZEP) da cidade de Balsa fosse alargada para uma área quase quatro vezes superior à existente, passando de 53 para 233 hectares. Ao mesmo tempo, é pedida a revisão da classificação para Sítio de Interesse Público (SIP). O prazo para reclamações decorre até ao próximo dia 23.
“Uma demarcação cirúrgica para deixar de fora os interesses imobiliários”, comenta Luis Fraga da Silva, exemplificando: o aldeamento Pedras d'El Rei continua a passar ao lado da ZEP. Por seu lado, Manuel Maia, que integrou a equipa do Campo Arqueológico de Tavira, em 1977, lembra que, já nessa data, detectara perigos de destruição. Por isso propôs, sem sucesso, que a ZEP se estendesse por uma área superior àquela agora apresentada. “Defendi que devia ir da linha de caminho-de-ferro até ao mar”.
Durante a construção do empreendimento turístico Pedras d´El Rei, recorda Manuel Maia, viu “cortar uma piscina romana ao meio para abrir uma vala”. Ao ser testemunha do atentado, recorda o apelo que fez ao engenheiro da obra: “Ao menos preservem a piscina, é importante até para o empreendimento”. A resposta foi negativa: “Está previsto construir aqui um T0”. Os vestígios arqueológicos, presume-se, foram descartados juntamente com o entulho.
A cultura do betão
O Plano de Ordenamento Territorial do Algarve (Protal), aprovado em 19 de Dezembro de 2007, atribui a Balsa um valor de “prioridade estratégica para a região” mas a antiga cidade ainda não foi encarada nessa perspectiva. “As taxas de construção e o valor do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) dominam a política autárquica”, observa Luis Fraga da Silva, lembrando os milhões que os municípios arrecadam por via do IMI, das luxuosas casas à beira-mar. No empreendimento turístico Pedras d´El Rei, defende, “era fundamental fazer-se uma prospecção geofísica por todo aquele espaço, para tirar a limpo quais são as zonas a preservar, sem se mexer nos jardins – não é pôr lixo debaixo do tapete, como a administração pública faz”. No mesmo sentido, Manuel Maia desabafa: “Construiu-se à doida”.
O processo de Balsa é paradigmático da forma como a administração pública pode adiar por décadas assuntos urgentes. Vejamos, em traços largos, alguns meandros da burocracia. Em Agosto de 1977, a câmara de Tavira envia telegrama “urgente” para a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC). “Queira ler bem no texto venda de propriedade agrícola Torre d’Aires. Repito Torre d’Aires”, acrescentando: “Consta ter grande valor arqueológico”. A propriedade estava a ser alvo de grande movimentação de terras para reconversão agrícola. De Lisboa, o arqueólogo da DGPC, Bandeira Ferreira, perante a falta de meios, sugere, na informação que redigiu, “agradecer à câmara e pedir-lhe que mantenha sob possível vigilância a propriedade em causa”. A seguir, os arqueólogos Maria Maia e Manuel Maia, do Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia (MNAE), fazem prospecções no terreno, tendo apresentado um mapa com uma proposta a fundamentar a área a classificar. Manuel Maia, questionado esta semana pelo PÚBLICO, recorda: “Sugeri que a propriedade fosse comprada pelo Estado por 6 mil contos (30 mil euros) - o mesmo valor que o novo dono, o senhor Barafusta, tinha dado pelo terreno”. A administração central pede a comparticipação do município, que informa só poder dispõe de 300 contos.
No Verão de 1978, um telegrama dos arqueólogos Manuel Maia e Maria Maia volta a alertar: “Bulldozer destrói sistematicamente cidade romana Torre d´Aires. Aguardamos que sejam tomadas medidas urgentes”. O assunto chega ao Governador Civil de Faro: “Proprietário aguarda resolução do assunto”. Entra então em campo Cristina Garcia, que fez prospecções no terreno, a pedido do Parque Natural da Ria Formosa, na no final da década de 80. “Mesmo à superfície encontravam-se vestígios à mão cheia”, recorda.
A história de Balsa é revelada, pela primeira vez, por Estácio da Veiga na segunda metade do século XIX, que dá conta de vestígios arqueológicos que se encontravam dispersos por hectares e hectares de vinhas, pomares, hortas e casario nas margens da ria Formosa.
Nas colecções do Museu Nacional de Arqueologia estão mais de 8 mil registos de peças que foram do Algarve para Lisboa. Os vestígios de necrópoles, uma parte habitacional, edifícios com mosaicos, tanques de salga de peixe, cerâmica e moedas ainda por lá subsistem, mas em larga medida a cidade continua por descobrir.
O relatório das últimas intervenções, levadas a cabo pela empresa de arqueologia Archaeofactory, contratada pela Surexport por exigência da DRCA, ainda não é conhecido. No entanto, um dos coordenadores científicos do projecto, Vítor Dias, em declarações ao PÚBLICO, advertiu: “O que se impõe é que se pense no sítio como tendo grande potencial arqueológico”.
No livro Balsa, cidade perdida, publicado há dez anos, Luís Fraga da Silva escreveu que a urbe poderia ser a “jóia da coroa” do legado romano na região. Autor termina com um lamento, depois de ilustrar o apogeu e declínio desta urbe: “É, assim, com tristeza, que vemos ser ignorado e desperdiçado o potencial científico e cultural deste raro tesouro patrimonial, em perigo iminente de uma liquidação definitiva”.