Mini-intestinos criados por portugueses ajudam doentes com fibrose quística
Em Portugal existe um dos quatro únicos centros de investigação no mundo que usam organóides, miniaturas de órgãos criados em laboratório, para a resposta aos fármacos dos doentes com fibrose quística.
Com uma minúscula parte de intestino, recolhida através de uma biópsia, os cientistas são capazes de fazer milhares de mini-intestinos no laboratório. Depois, nestes tecidos chamados “organóides”, testam a resposta de um doente a determinado fármaco. O teste permite saber se o tratamento vai ser eficaz e, assim, evita que o doente seja submetido a uma terapia que, além de muito dispendiosa, pode não resultar. No Instituto de Biossistemas e Ciências Integrativas (BioISI) da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa existe uma das quatro únicas equipas no mundo que usam esta técnica para doentes com fibrose quística. Os investigadores portugueses preparam-se agora para iniciar um ensaio clínico em Portugal e em Espanha que deverá validar o procedimento.
Os órgãos criados em laboratório - sejam miniaturas, modelos tridimensionais ou outras tentativas - são uma das mais importantes frentes de investigação da medicina regenerativa. O objectivo é, um dia, “(re)produzir” órgãos de tamanho natural e funcionais, capazes de corrigir ou reparar as falhas do nosso organismo.
A complexidade do desenvolvimento e funcionamento de um órgão humano tem dificultado esta ambiciosa tarefa. Mas, os cientistas estão longe de estar de mãos vazias. Aqui e ali, surgem as notícias de uma ou outra equipa que conseguiu, por exemplo, fazer mini-rins, mini-fígados, mini-intestinos e até mini-cérebros no laboratório. E para que servem estas miniaturas de órgãos? Servem, sobretudo, para testar de forma rápida, pouco invasiva e mais barata a eficácia de fármacos e a resposta de um doente a determinado tratamento.
Em Portugal, também se fazem organóides. A equipa do BioISI faz mini-intestinos para testar a resposta dos doentes a novos fármacos desenvolvidos para tratar a fibrose quística, uma doença rara que afectará cerca de 300 portugueses (32 mil pessoas na Europa e 85 mil no mundo).
“A partir de uma pequena biópsia rectal isolamos as células estaminais desse tecido e cultivamo-las em laboratório, fazendo-as crescer para formar os organóides intestinais”, explica Margarida Amaral, investigadora que coordena o BioISI. Nos últimos dois anos, a técnica já foi usada com 15 pessoas. E como este é um dos quatro únicos centros do mundo (os outros são na Holanda, na Bélgica e, muito recentemente, nos EUA) que se dedicam a esta área específica da fibrose quística, além dos testes a doentes portugueses, os investigadores também aceitaram pedidos dos Estados Unidos, Brasil, Alemanha.
Uma proteína avariada
A fibrose quística é uma doença genética que torna o líquido dos pulmões viscoso, dificultando a respiração e provocando infecções. Afecta sobretudo os pulmões mas também outros órgãos, como os intestinos.
Até há pouco tempo, existia apenas o tratamento sintomático para estes doentes com uma esperança da vida à volta dos 30 anos. “A resposta a estes doentes passava (e na maioria dos casos ainda passa) apenas por tratar os sintomas, recorrendo a antibióticos para as infecções respiratórias ou mucolíticos para ajudar a dissolver o muco espesso que fica acumulado nos pulmões e nas vias respiratórias”, explica Margarida Amaral.
A doença é causada por mutações num gene chamado CFTR. É uma doença genética e hereditária e para se manifestar é preciso que uma pessoa herde duas cópias do gene, uma da mãe e outra do pai. A hidratação das vias respiratórias depende da acção desta proteína CFTR e, por isso, quando funciona mal há problemas. Sabe-se hoje que há duas mil possíveis “avarias” (mutações) nesta proteína.
“Trata-se de uma proteína que é um canal que transporta iões de cloreto para dentro e fora da célula. No caso da fibrose quística, esta proteína não funciona. Os doentes têm sobretudo patologias respiratórias bastante grave, com pneumonias sucessivas e vão tendo uma perda de função respiratória que só se resolve com transplante pulmonar e, às vezes, até ainda na adolescência já precisam de transplante”, refere a investigadora.
E se tentássemos reparar a proteína? “É exactamente isso que se está a começar a fazer. Começaram a aparecer há cerca de três anos os primeiros medicamentos que têm como alvo a proteína e não os sintomas”, diz Margarida Amaral. No entanto, estes novos fármacos podem custar cerca de 250 mil euros por doente e por ano e têm de ser usados durante toda a vida. É preciso saber onde e como investir.
Como existem muitas mutações associadas a esta doença, não se sabe ainda se os fármacos aprovados para algumas das avarias na proteína são eficazes para outras. “Há muitos doentes que não têm a mutação que está no rótulo, na bula destes novos medicamentos e podem não responder. Mesmo para os pacientes com as mutações indicadas, o nível de resposta é muito variável”, nota a investigadora.
Mutação “portuguesa”
O trabalho da equipa do BioISI tenta evitar que um doente seja submetido a um tratamento que não vai resultar. Porém, quando se percebe nos organóides fabricados pelos investigadores que o fármaco é eficaz e consegue reparar a “avaria” surge um novo problema. É que falta garantir o acesso dos doentes aos dispendiosos fármacos.
Os dois novos fármacos aprovados são específicos para determinadas mutações. O primeiro que foi aprovado (cujo princípio activo é o ivacaftor) é para mutações que em Portugal dizem respeito a apenas dois doentes (um residente na Madeira e outro no Porto). Margarida Amaral adianta ainda que “um deles [da Madeira] já está em tratamento e o outro doente deve começar em breve”.
O outro medicamento (com os princípios activos ivacaftor e lumacaftor) é para doentes que têm uma mutação que se chama F508del, a mutação mais frequente em todo o mundo (também em Portugal) e que afecta cerca de 85 % das pessoas que têm fibrose quística.
Ao PÚBLICO, o Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde esclarece que alguns destes doentes podem beneficiar de um Programa de Acesso Precoce (PAP) ao ivacaftor e lumacaftor, que foi aprovado a 19 de Dezembro do ano passado e que terminou a 30 de Abril de 2017. Este PAP deverá garantir tratamento a um grupo de 20 doentes em Portugal. Margarida Amaral adianta que actualmente três doentes já estão a tomar estes fármacos. E o Infarmed, por sua vez, acrescenta que o tratamento já foi aprovado para 18 doentes e os restantes dois estão ainda em avaliação.
Mas além das mutações genéticas mais frequentes que estes novos medicamentos têm como alvo, há outras que são mais comuns em determinadas populações. Os doentes com fibrose quística de Portugal e Espanha, por exemplo, partilham uma mutação chamada A561E que, segundo Margarida Amaral, afecta um a 2% dos doentes. “Estamos a fazer testes para pacientes com esta mutação específica e já mostrámos que o ivacaftor e lumacaftor são eficazes nestes casos”, adianta.
Com base nos resultados dos testes pré-clínicos feitos com organóides e também com células dos pulmões (órgãos cedidos por doentes com fibrose quística que acabaram por ter de se submeter a um transplante), a equipa do BioISI pretende avançar em breve para um ensaio clínico. Inicialmente estava previsto que esta parte da investigação envolvesse apenas doentes com a mutação A561E, comum em Portugal e Espanha, mas, segundo Margarida Amaral, os testes clínicos podem vir a ser alargados a doentes com outra mutação (a R334W) que os investigadores testaram nos organóides que fizeram. “Fizemos um trabalho pré-clínico, com organóides de intestinos e células de pulmão, e o ensaio clínico é o próximo passo.”
O ensaio deverá decorrer no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e no Hospital Vall d’Hebron, em Barcelona, contando-se com a colaboração dos hospitais portugueses que tenham doentes com estas mutações. Antes disso, no próximo mês de Julho, os investigadores portugueses orientam um seminário em Lisboa para “ensinar” cientistas de todo o mundo a fazer mini-intestinos que podem ajudar doentes com fibrose quística.