O dia em que Alberto García-Alix tomou conta do assunto
É o “espírito Alix” que mais se faz notar no PhotoEspaña. Deram-lhe rédea solta para seis exposições e ele escolheu seis fotógrafos com olhares heterodoxos, com obras secretas e vidas alternativas. Seis fotógrafos que se podiam chamar Alix. O tema é ele.
Elvis has left the building” era uma frase usada para tentar dispersar a audiência disposta a esperar eternamente por um encore no final dos concertos do rei do rock. Em sentido contrário, um pregão do tipo “Alberto García-Alix chegou ao edifício” bem podia ser usado sempre que se quisesse cativar a atenção de uma multidão dispersa e faladora. Melhor, se se quiser dar um ambiente descontraído, natural e genuíno àqueles momentos formais das inaugurações que (quase) toda a gente faz questão de seguir à risca. Sem ser um fura-protocolo, durante a maratona de apresentações em Madrid das seis exposições que escolheu para a edição XX do festival PhotoEspaña (deram-lhe carta-branca para seis exposições) García-Alix soube dar simplicidade às mensagens que queria transmitir (sem as tornar simplistas), reconheceu com humildade a admiração e a influência que cada um dos autores que escolheu tiveram no seu trabalho e soube sublinhar a amizade cúmplice que o liga a alguns deles. Foi um king of cool.
De riso fácil e humor refinado, Alberto García-Alix (Leão, 1956) vive um momento fulgurante da sua carreira, com múltiplas exposições, livros e solicitações para falar sobre o seu trabalho. Aproveitando este momento estelar e querendo homenageá-lo como um dos primeiros fotógrafos espanhóis a merecer uma exposição retrospectiva na primeira edição do festival, em 1998, o PhotoEspaña deu este ano rédea solta a Alix para construir um programa expositivo à sua medida. E ele levou até Madrid a obra de Anders Petersen (Solna, Suécia, 1944), Teresa Margolles (Culiacán, México, 1963), Paulo Nozolino (Lisboa, 1955), Pierre Molinier (Agen, França, 1900-1976), Antoine d’Agata (Marselha, França, 1961) e Karlheinz Weinberger (Suíça, 1921-2006). Pelo olhar destes artistas também é possível traçar um mapa dos universos criativos do próprio fotógrafo leonês, em que habitualmente assumem protagonismo as margens da sociedade, as tribos urbanas, os mundos intimistas, a ousadia da diferença, a paisagem poética e a auto-representação. “Quisemos ver a fotografia através dos olhos do Alberto”, diz María García Yelo, directora do festival, para quem este grupo “usa a imagem fotográfica de uma maneira muito particular e por vezes estranha”.
“São autores que procuram um campo difícil que é o sublime, fotógrafos que conseguem mostrar, ao mesmo tempo, beleza, dor, horror e amor”, explicou Yelo, que cumpre este ano o seu terceiro e último ano à frente do festival.
Numa edição festiva (a celebração continua para o ano, quando se cumprirem 20 anos depois do primeiro festival), o programa da secção oficial (com 22 exposições) é extraordinariamente eclético, tentando corresponder a um espectro de públicos o mais abrangente possível. As propostas vão do clássico, com fotógrafos tão lendários quanto Elliott Erwitt, Cristina García Rodero, Gabriele Basilico, Carlos Saura ou Minor White, o histórico, com as paisagens americanas de Carleton Watkins e o universo cultural e artístico que envolveu o pintor espanhol Joaquín Sorolla. E ainda o campo conceptual, com as apropriações das gravuras de Goya de Fardeh Lashai, ou a busca de Peter Fraser pelas “manifestações da matemática” na paisagem.
A secção oficial inclui ainda duas exposições colectivas que juntam em pólos opostos um grande número de autores: uma, sobre o centenário da Leica (que passou pelo Porto), traça o uso da mítica câmara através do olhar de dezenas de fotógrafos ao longo do século XX; a outra tenta sentir o pulso à mais recente produção de fotografia de autor em Espanha, uma selecção através da qual se percebe a força do documental mais puro e o namoro pelo documental ficcionado (o fotógrafo português Fábio Cunha, que estudou e trabalhou em Espanha, foi um dos autores seleccionados). No campeonato da fotografia anónima, que ganha protagonismo de dia para dia, o sempre refrescante espaço do Museu Lázaro Galdiano mostra uma das exposições mais surpreendentes do festival, A La Pata Coja (ao pé coxinho), um conjunto de quase cem fotografias (escalas, técnicas suportes diferentes) minuciosamente alinhado pelo artista multifacetado Eduardo Arroyo, que mistura fotografia de autor (não identificada como tal na sala) com fotografia comprada em mercados e lojas de segunda mão. Pormenor: em todas as imagens alguém está com uma perna levantada.
Espírito Alix
À diversidade destas propostas (às quais se podiam somar, só em Madrid, dezenas de outras exposições espalhadas por galerias e instituições convidadas) opõe-se a coerência do olhar de Alberto García-Alix. E esta unidade impõe-se a um nível tão forte que se pode dizer que, à falta de um tema geral, é o fotógrafo espanhol que assume maior protagonismo no festival (mesmo sem expor na secção oficial). O tema da XX PhotoEspaña bem podia ser “espírito Alix”, conceito que andará entre o desafiador, o poético, o indomável e, claro, o heterodoxo.
Esse espírito começou a ser desvendado logo no primeiro dia de inaugurações, na semana passada, quando o fotógrafo-motoqueiro confessou, ao lado de Paulo Nozolino, que a concretização destas exposições (agrupadas sob o lema A Exaltação do Ser. Um Olhar Heterodoxo) lhe tinha servido de “alimento para a alma”.
Já longe dos microfones no primeiro embate, disse ao Ípsilon como lhe agradava a montagem que tinham feito para a exposição Loaded Shine, embora quisesse que o muro que intermedeia a entrada e as fotografias fosse mais comprido, de maneira a “proteger” e a isolar ainda mais o trabalho de Nozolino. Nas palavras que deixou inscritas na Sala Goya, onde brilha Loaded Shine, García-Alix faz um exercício de adivinhação para, imediatamente a seguir, nos trazer de novo à terra sobre o que está à frente dos nossos olhos: “Talvez Nozolino tenha começado a olhar o céu. Um céu sempre carregado. As suas imagens parecem sair de sonhos. Hoje, com este trabalho, ele sujeita o seu olhar ao intemporal e em relação àquilo que, aparentemente, já está morto. Vemos um mundo que se destrói continuamente.”
De uma sala “sacra” Alix conduz-nos logo a seguir para uma espécie de quarto escuro onde reina o mundo transgressivo de Pierre Molinier, poeta, pintor, “surrealista esquecido”, maldito, xamã, figura violenta e provocadora (Foi Um Homem sem Moralidade, chama-se a exposição), fotógrafo da transfiguração, do desejo, do fetiche e do prazer narcísico. O sentimento de García-Alix balança entre a compaixão e a admiração profunda por um “feroz hedonista e independentista”, alguém que preparou a morte e escreveu a lápide da sua sepultura (reivindicando precisamente uma existência amoral). O culto crescente (e a especulação) em relação à obra radical-obsessiva de Molinier, caricaturado como “homem-puta” e classificado como “o artista mais sincero do século XX”, é proporcional ao medo e à repulsa que ainda provoca. Parece óbvio que García-Alix sabe disso, como parece evidente que lhe dá especial gozo mostrar num centro de belas-artes as imagens de um enorme transgressor que não ambicionou a glória artística. Numa sala pequena e redonda, alinham-se cadeiras estufadas que nos convidam a um olhar mais demorado, um pouco como se estivéssemos a espreitar pelo buraco da fechadura, a entrar na intimidade andrógina de um mestre da representação, da ilusão e da transfiguração do corpo.
Das profundezas da existência de “um grande fabulador” que expiou os seus demónios através do corpo, Alberto García-Alix indica-nos a seguir outro cultor do auto-sacrifício como acto de resistência, Antoine d’Agata. Na instalação Corpus, o fotógrafo francês usa fotografia, texto e vídeo (e muito design) para percorrer os temas nucleares de uma obra em que é criador e protagonista. Numa linha circular (num obra que parece andar em círculos) aparece a dependência do sexo e das drogas, de uma vida sempre à beira do excesso, do limite, do precipício e da queda. Esta viagem, conduzida pelo medo e pelo desejo, começa em 1987 e termina em 2016. Pelo meio, a repetição de imagens de violência, esgar, sofrimento, demência e desespero. Nos vídeos, vozes constrangidas de mulheres soltam frases em registo diarístico como “Tenho a boca cheia de moscas”, “Não posso ficar debaixo do teu corpo doente” ou “Daqui para a frente envolve-me na tua obscuridade”.
Ainda na visualidade do corpo, mas sobretudo na agitação social e política que a sua transformação pode causar, o trabalho de Teresa Margolles é entre todos os artistas eleitos para a carta-branca de García-Alix aquele que mais denúncia carrega. Um conjunto de grandes fotografias a cores (agora no espaço Centro Centro) revela a destruição de clubes nocturnos, de espaços de baile e de diversão na cidade mexicana de Ciudad Juarez, onde trabalhadoras transgénero exerciam a sua profissão. Privadas destes lugares de refúgio, ficaram à mercê de um sociedade violenta e intolerante, “condenadas” à ostracização. Carla, uma transexual com quem Margolles trabalhou e de quem era amiga foi assassinada durante a realização desta série. Porquê? “Por ser transgénero. Esventraram-na.”
Nas margens, com os rebeldes
É sobre aqueles que vivem nas franjas da sociedade de que fala também Café Lehmitz, de Anders Petersen, que, no final dos anos 60, passou dois anos e meio naquele bar de Hamburgo, a conviver e a fotografar uma clientela formada por proxenetas, prostitutas, drogados, estivadores, criminosos, velhos solitários e alcoólicos. Alberto García-Alix confessou uma profunda admiração por este trabalho seminal da fotografia europeia e encomendou ao comissário Nicolás Combarro uma revisitação da obra. O resultado é a revelação, pela primeira vez, das folhas de contacto das milhares de fotografias que Petersen tirou no Lehmitz, que hoje já não existe. Há também fotografias que nunca tinham sido ampliadas, facto que transforma esta exposição num marco do festival. O ambiente de vibração e de folia constantes no Café Lehmitz, com todo o tipo de exibicionistas, pode dar a ideia de que tudo aquilo não passava de um mundo teatral, um “circo social”. Em conversa com Ípsilon, Petersen desmente esta provocação: “Não são actores. São muito reais. São pessoas normais, um grupo que não pertencia realmente à sociedade, que estava fora dela.”
E para terminar a carta-branca de Alix, o trabalho de alguém que também procurou dar imagem a um mundo marginal e underground, Karlheinz Weinberger, que nos últimos anos tem sido objecto de curiosidade e de interesse (terá uma grande exposição individual nos Encontros de Arles deste ano). Weinberger começou a tirar fotografias na adolescência e nos anos 40 juntou-se ao clube gay Der Kreis (O Círculo), começando a publicar na revista com o mesmo nome, título que viria a tornar-se um referente para o movimento homossexual. No final dos anos 50, depois de pedir a um rapaz numa rua de Zurique se o podia fotografar por causa de uma indumentária de ganga inspirada na cinematografia americana, passou a retratar (sobretudo) rapazes suíços que procuravam desafiar os conceitos tradicionais de masculinidade e feminilidade. Pelas imagens de Weinberger (expostas no Museu do Romantismo) pode perceber-se que os fotografados o fizeram sobretudo através da reciclagem e do pastiche dos símbolos dos rebeldes sem causa ou da criação de novos adereços e vestuário, que tinham um toque artesanal e, sobretudo, caminho aberto para chocar.
Na primeira vez em que se deparou com as fotografias de Karlheinz Weinberger, García-Alix ficou seduzido apenas pelo brilho das chapas dos cintos (muitos com a figura de Elvis estampada), com a ousadia de fazer das braguilhas um tema fotográfico e com o rock transmitido por estas fotografias. Depois de investigar e estudar a obra percebeu que havia mais para além dos adereços de vestuário estranhos, uma obra “complexa”, que foi sendo construída num apartamento onde Weinberger vivia com a mãe. Quando começou a levar estes rapazes para o estúdio improvisado de casa, uma das primeiras coisas que tratou de fazer foi mudar a discografia, passando da música clássica para o rock. Tudo para criar o ambiente adequado para as suas imagens que, com o passar do tempo, revelar-se-iam cada vez mais ousadas. “Depois de vermos o conjunto da sua obra, percebemos que no início ele só estava interessado nos jeans, nos cintos e nas braguilhas. Mas depois começou a pedir aos modelos para tirarem as calças, e, mais tarde, pediu-lhes retratos com a gaita na mão. Isto era uma grande ousadia para a época. Podemos dizer que através da fotografia fazia sexo. Mas não havia fisicalidade nestes momentos de intimidade. Não havia outra relação que não a fotográfica. E esta é a grande heterodoxia deste homem e deste trabalho”, observa García-Alix.
Weinberger nunca foi um fotógrafo a tempo inteiro. Trabalhava como fiel de armazém de segunda a sexta e só se dedicava à fotografia aos fins-de-semana. “Este homem encontrou sentido para a sua vida através da fotografia, através da relação que estabeleceu com estes rapazes pelos quais foi seduzido. Foi um fotógrafo que viveu seduzido pelo que retratou”, diz García-Alix. E aponta uma terceira mudança de direcção no trabalho do fotógrafo suíço, no final dos anos 70, quando começa a ir às concentrações de motoqueiros: “Apesar de serem homens românticos, não é o tipo de homens que estamos à espera de encontrar no Museu do Romantismo. Até agora.” (Risos.)