A sobrevivência de um cadáver político
O Brasil será sempre um país melhor sem a indecência que hoje o governa.
Durante longas horas, as televisões de notícias por cabo do Brasil transmitiram intermináveis monólogos de juízes do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) a debitar erudição e a citar parágrafos da lei. Nos cafés do centro do Rio de Janeiro, ninguém parecia prestar a mínima atenção, mesmo que em discussão estivesse a possibilidade de o mandato do presidente Michel Temer ser cassado por “crimes políticos e económicos” – a “chapa Temer/Dilma é acusada de ter recebido financiamentos ilegais na campanha de 2014. Depois de dois anos de revelações sobre uma intrincada rede de corrupção no coração do Estado, das suspeitas que impendem sobre dois terços dos membros do Congresso, de acusações de branqueamento de capitais ou obstrução à justiça ao ex-presidente Lula ou ao ex-líder da oposição Aécio Neves, após mais de 100 prisões e de dezenas de delações, os brasileiros começam a habituar-se a este novo normal em que a Justiça deitou a mão à política. A sublimação das suas novas ansiedades exibe-se com uma palavra velha: sacanagem.
Temer (e Dilma Rousseff), tudo o indica, vai sobreviver ao julgamento em curso no TSE. Após ter detonado a bomba atómica na destituição de Dilma Rousseff, o sistema constitucional dá conta que não dispõe de mecanismos institucionais capazes de responder a uma crise ética e política desta dimensão. No arranque do julgamento em curso, o próprio presidente do TSE, Gilmar Mendes, sublinhava que o que estava em causa era a possível “impugnação da chapa presidencial num grau de instabilidade que precisa de ser considerado”.
Quando o jornal Globo revelou a transcrição de uma conversa entre Temer e o empresário Joesley Batista, nas quais se podia inferir o incentivo do presidente ao pagamento de subornos ao ex-presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha, para que se mantivesse em silêncio na prisão, a eventual cassação do seu mandato pelo TSE foi encarada como uma solução para afastar um Presidente indigno. Hoje, nem a prisão do seu assessor principal, Rocha Loures (apanhado a receber uma mala com 500 mil reais, 130 mil euros), nem as provas da delação do construtor Marcelo Odebrecht ou do marqueteiro da campanha de 2014, João Santana, bastam para que Temer caia.
O Brasil, exausto e em crise, hesita entre um mal sabido e uma mudança incerta. Olhar para o Presidente e ver nele um suspeito das maiores vilanias é horrível, mas cassação do seu mandato abriria portas à incerteza total. Eleições directas ou indirectas? Quem substituiria Temer no caso da escolha do seu sucessor passar por uma votação no Congresso? Pode um Congresso minado pela corrupção eleger um presidente com legitimidade? Depois, a um ano e meio do final do actual mandato, faz sentido desencadear um complexo processo de revisão constitucional para permitir uma eleição directa antecipada? “Uma crise que se respeita não admite saída óptima”, escrevia, certeiro, Delfim Netto, várias vezes ministro, incluindo das Finanças entre 1967 e 1974, no Valor Económico.
Temer sobrevive também porque pela primeira vez em nove trimestres a economia deu sinais de recuperação e porque a agenda de reformas que o seu Governo prescreveu continuam a ter o apoio da maioria no Congresso (esta semana uma comissão especial do Senado deu mais um passo para a mudança nas leis do trabalho). Com 14 milhões de desempregados, com os sinais de que as chagas velhas do país como a da violência estão a crescer, haver uma luz ténue ao fundo do túnel é uma dádiva. Para os brasileiros e para Temer, que começa a vestir a pele do mal menor.
Se, como se admite, o TSE absolver Temer (e Dilma), a crise fica onde está. Em suspenso, até que se abra uma nova tempestade e seja necessário definir um novo limiar do escândalo para que o presidente caia. A defesa do Presidente receia que a procuradoria tenha em mãos o “armazenamento táctico” de áudios ainda não revelados da conversa entre Temer e Joesley. Saber se Rocha Loures, o homem da mala que o juiz relator do Lava Jato considerou como a longa manus de Temer vai fazer uma delação premiada é uma questão-chave para o futuro. Se um cenário desses acontecer, o principal sustentáculo do Governo Temer, o PSDB, acentuará as suas visíveis divergências internas e pode sair do barco. Sem governação capaz de aprovar reformas, o país ficaria ainda mais bloqueado. E o argumento do mal menor cairia.
Nas ruinas do actual sistema político, será sempre difícil encontrar um alicerce viável para o futuro. No Brasil, o combate judicial à corrupção ainda está longe do fim. O que vai sair daí é uma incerteza ao mesmo tempo angustiante e libertadora. Mas trará sempre dividendos. O Brasil será sempre um país melhor sem a indecência que hoje o governa.