Nas suas malhas caíram os peixes, agora formam arte. As redes de pesca são as novas rendas de bilros

Têm o mar como fonte de inspiração e colocam os sonhos na renda. As rendilheiras de Vila do Conde estão a transformar os velhos fios de pesca em rendas de bilros e o resultado é apresentado este sábado.

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Paulo Pimenta
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Há quatro séculos que pelas mãos das rendilheiras de Vila do Conde passam os fios que dão forma a pormenorizados desenhos. Estas artesãs são, muitas vezes filhas, netas, bisnetas de outras tantas que, como elas, se dedicaram de corpo e alma às rendas de bilros e já fizeram arte com os mais variados materiais. Agora chega a vez das redes de pesca, que já foram ao mar e agora regressam para dar corpo - e tema - a uma antiga tradição.

Maria da Guia não é nova nestas andanças. Todos os dias tem um lugar à sua espera no Museu das Rendas de Vila do Conde, onde corta, enrola e cruza os vários bilros, instrumentos de madeira, que estão cuidadosamente colocados numa almofada em cima das suas pernas.  

É um trabalho que faz desde os quatro anos, quando começou a aprender a fazer rendas de bilros, na antiga Escola de Rendas de Vila do Conde. A mãe era rendilheira e as irmãs também chegaram a trabalhar na área, mas só ela é que deu continuidade ao trabalho. “É a minha vida. Nunca conheci mais emprego nenhum a não ser este. Sou uma apaixonada pela renda”, conta, sem tirar os olhos do trabalho.

Agora, com 66 anos e a confiança de quem já teve muitos projectos em mão, Maria diz não existir nenhum fio que não consiga trabalhar. Já usou cobre, prata, lã e nos últimos meses são os fios de pesca que lhe passam pelas mãos.

As rendilheiras de Vila do Conde estão a transformar o material utilizado na pesca e no arranjo das redes em rendas de bilros. Para quem não imaginava que isto fosse possível, provou-se o contrário. Fazer novas rendas com velhos fios é um trabalho minucioso, que “dá muitos calos, mas que resulta”.

Ter o mar como inspiração

Eugénia Cunha, responsável pelos desenhos e pela coordenação do projecto, quis retratar duas das maiores tradições de Vila do Conde: as rendas de bilros e o mar. Para a autora, é um trabalho moderno, “profundamente sentido e cuidado”, que pretende preservar o património cultural e sensibilizar o público para a protecção dos oceanos. “Isto é um património que passa de geração em geração, de avós para filhas, de filhas para netas e é esse o foco principal do nosso projecto”, afirma.

A ideia de utilizar material de pesca surgiu naturalmente. “Procurei alguma matéria que me fizesse bem à alma. Havia os fios que se podiam retirar do mar, pensei nos que estão nas Caxinas que estavam inutilizados, que iam para o lixo”, diz Eugénia Cunha. O projecto passou para o papel e tornou-se realidade através da renda.

Nas almofadas onde as rendilheiras trabalham, vêem-se desenhos de algas de todas as formas porque “o mar é a inspiração”, não fossem as Caxinas um dos maiores núcleos piscatórios do país. As rendilheiras estão em terra e a sua história está ligada ao mar. Em tempos passados, no Inverno, quando o mar afastava os homens, era o dinheiro ganho com a venda de renda de bilros que sustentava o lar do pescador.

Para Maria da Guia é como revisitar o passado. “O meu pai era pescador e costumava fazer as suas próprias redes. Trabalhar com estes fios é uma grande alegria porque fui buscar o meu passado de criança, a ver o meu pai a trabalhar”, recorda, ao mesmo tempo que trabalha com cuidado o desenho na almofada.

O desafio foi proposto pela Câmara Municipal de Vila do Conde e foi aceite com entusiasmo pelas rendilheiras. Para todas, é um trabalho que incentiva à inovação e que serve para motivar os mais jovens a conhecerem a actividade e perceberem que modernidade e tradição podem caminhar lado a lado.

Uma arte que não se desaprende

Vila do Conde e Peniche são as duas cidades portuguesas que trabalham em rendas de bilros. Em terras vila-condenses é uma tradição que perdura e tenta encontrar mais pessoas que a queiram abraçar. Quem já faz parte da mobília continua a trabalhar, com cada vez mais rapidez e destreza.

Ao fundo do corredor, mesmo ao lado da janela com vista para o jardim, está mais uma Maria: Maria da Lapa, a rendilheira mais antiga. Acabou de chegar e já está a trabalhar num pano para a mesa de jantar. Nas mãos leva os 79 anos de trabalho, e na memória os projectos que fez.

Quando era criança, via as vizinhas a trabalhar as rendas à porta de casa e a curiosidade falou mais alto. “Eu fugia de casa para ir para a beira delas e sempre disse que queria ser rendilheira”, conta. Ao contrário de muitos casos, o gosto não veio de família. A avó queria que seguisse as suas pisadas como costureira, “mas a renda foi o que ficou”.

Agora não está à porta de casa, mas à entrada do museu, que também é uma escola para os mais pequenos. É ali que diz encontrar o conforto e distracção que precisa. “As minhas colegas perguntam-me quando é que eu deixo isto para ir ao café com elas, mas eu não vou, só vou depois. Prefiro vir para aqui”, explica, entre sorrisos.

Já para Maria Isalinda, o som dos bilros são música para os seus ouvidos. Aprendeu a rendilhar com cinco anos. Teve algumas interrupções, mas a renda ficou sempre lá. “Isto é uma coisa que se aprende e nunca mais se esquece. Tinha sempre uma almofada em casa. É um bichinho que nos fica para sempre”, conta. A toalha que está agora a fazer vai ser levada para a Feira Nacional de Artesanato de Vila do Conde, uma das formas de mostrar o trabalho que é feito.

A estas rendilheiras juntam-se muitas outras que, todos os dias, entram no Museu de Vila do Conde para colocar os seus sonhos na renda. O resultado final do projecto com os fios de pesca vai ser apresentado este sábado, dia 3, no Desfile de Moda Bilros 2017, pelas 21h30 na Praça Vasco da Gama. Enquanto o fio não acaba, as rendilheiras continuam a manusear os bilros, cantam juntamente com eles e trazem o mar à terra.

Texto editado por Ana Fernandes

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