NATO, negócios e segurança
Trump acha que a NATO, tal como está, é um mau, muito mau negócio, no sentido empresarial. Mas isso não significa que não continue a ser importante para os EUA.
1. Nos últimos dias, Angela Merkel constatou uma dura realidade da política internacional, que hoje causa mal-estar nas relações euro-atlânticas: nem sempre se pode "confiar nos nossos aliados e parceiros". A frase foi proferida numa acção de campanha eleitoral do seu partido, os democratas-cristãos (CDU), para as próximas legislativas alemãs de 24/09. Mas teve grande repercussão internacional. Ocorreu após a visita do presidente norte-americano à Europa, a qual não esbateu as divisões já existentes. A despesa militar na NATO e o comprometimento norte-americano com a Aliança Atlântica, o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas e abordagem ao problema dos refugiados estiveram no centro das divergências. Várias interrogações vêm à mente. Até onde podem levar estas divergências? Estará o futuro da NATO em causa? Como pode a União Europeia responder a esta crise e evitar fragilizar a sua segurança?
2. Comecemos pela NATO. Importa contextualizar a tão referida omissão discursiva de Donald Trump sobre o artigo 5.º do Tratado de Washington. Ocorreu durante uma cerimónia comemorativa das vítimas 11/S na sede da organização. Trump elogiou a resposta pronta e solidária dos aliados à invocação desse artigo, da única vez que foi feita em toda a história da Aliança Atlântica. Uma possível interpretação alternativa à do não comprometimento de Trump com a NATO, é que neste contexto estaria implícita uma referência ao artigo 5.º. Importa também notar que, apesar da retórica anterior de Trump sobre o carácter obsoleto da NATO, a sua prática política tem sido diferente. Após ter sido eleito, o convite formal à adesão do Montenegro à NATO foi efectuado, apesar da oposição russa. Noutro ponto sensível, a deslocação de mais forças da NATO para os países do Leste europeu, próximo da fronteira com a Rússia, continuou a decorrer tal como previsto, incluindo com meios norte-americanos.
3. Resta a questão da divergência sobre os 2% de despesas militares, o valor de referência da NATO. É assim tão importante para poder originar um não comprometimento norte-americano com a segurança europeia? Olhemos para a questão numa outra perspectiva. Trump parece ver a NATO como um CEO (Chief Executive Officer), de uma empresa, não com a visão estratégica que se esperaria de um estadista da maior potência mundial. A despesa militar dos europeus abaixo dos 2% é onde este acha que pode mostrar o seu talento de negociador. A Alemanha, como principal economia da União Europeia — e maior exportador europeu para os EUA —, é o seu alvo preferido. Na visão de Trump, o défice da balança comercial norte-americana com a Alemanha só existe porque esta não gasta o que devia em equipamentos militares, comprando mais material aos norte-americanos. Impõe-se fazer uma troca justa: os EUA garantem a segurança europeia e alemã e gastam mais com isso. Assim, os aliados têm de compensar os EUA comprando-lhe mais material militar ou importando produtos norte-americanos. Trump acha que a NATO, tal como está, é um mau, muito mau negócio, no sentido empresarial. Mas isso não significa que não continue a ser importante para os EUA: a máquina político-diplomática-militar mostrou isso com Trump já no poder.
4. Como já notado, Donald Trump não interiorizou plenamente que é chefe de Estado, nem a abrangência das responsabilidades que isso implica na esfera política, estratégica e militar. Em muitas das suas atitudes deixou ficar a sensação de ser mais um CEO intratável e inconstante, do que o líder da maior potência global. A visita à Arábia Saudita mostra bem esse tipo de conduta e personalidade. Trump, enquanto candidato republicano, fez acusações bastante graves. A Arábia Saudita suportava grupos islamistas-jihadistas que recorrem ao terrorismo e apoiava grupos como o Daesh na guerra da Síria. A maioria dos perpretadores do 11/S eram sauditas. Mas era apenas retórica eleitoral. Tudo parece ter ficado sanado com a venda de material militar e outros contratos no valor de 110 mil milhões de dólares, o maior da história dos EUA. A aliança com os sauditas mostrou ser um excelente negócio, o que, na sua mente, parece satisfazer o interesse político-estratégico dos EUA. Se os europeus tivessem feito da mesma maneira, a despesa militar na NATO já não seria ponto de discórdia.
5. Olhemos para a cimeira do G7 e vemos melhor os contornos dos atritos nas relações euro-atlânticas: nas últimas décadas, em particular após final da Guerra-Fria, a relação da Europa com os presidentes republicanos sempre foi conturbada. Abstraindo da retórica pouco diplomática e por vezes agressiva de Trump, a sua posição não é muito diferente daquela a que nos habituaram os últimos presidentes republicanos, em particular George W. Bush: cepticismo face às alterações climáticas e evitar compromissos internacionais nesta área. Trump parece querer fazer com o Acordo de Paris o que Bush fez com o Protocolo de Quioto — desobrigar-se do mesmo. Mais uma vez os interesses empresariais, aparentemente não tanto da indústria petrolífera (onde até houve apoios acordos ao Acordo de Paris), mas de outras indústrias poluentes, e a questão dos empregos no Rust Belt, projectam-se na política externa norte-americana. Claro que isto choca com a sensibilidade europeia e as suas prioridades políticas, entre as quais se encontram as questões ambientais. Na realidade, há dois modelos de capitalismo e visões do mundo que nunca foram exactamente iguais. Hoje as diferenças são mais acentuadas e notórias.
6. Impõe-se constatar um problema crucial nas relações euro-atlânticas. Não existe a mesma solidez na percepção de inimigos comuns que nos tempos da Guerra-Fria. A história mostra que esse tende a ser o maior cimento de uma aliança político-militar. Todavia, apesar da retórica de Trump, a NATO continua a ser importante na estratégia norte-americana (embora a Ásia-Pacífico tenda a adquirir crescente relevância) e também britânica (até pela sua saída da União Europeia). A isto juntam-se os interesses de segurança dos países do Leste europeu (receosos da Rússia). Mas a NATO não responde a outra parte significativa dos problemas europeus, sobretudo os derivados dos conflitos do Sul do Mediterrâneo e Médio Oriente. Para os EUA, são problemas a milhares de quilómetros de distância do seu território, subordinados ao seu interesse nacional. Para a União Europeia são situações graves na fronteira, que se projectam no seu interior com duras consequências. Com Trump ou outro presidente dos EUA, a evolução do mundo vai por aí. Os europeus vão ter de lidar com esta realidade. E se não tiverem uma resposta ninguém se substituirá a estes na defesa dos seus interesses.