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As cidades e os negócios

O proibicionismo [no arrendamento local] de inspiração estatal é pernicioso, mas a absoluta desregulamentação que institui o virar a cara ao problema não o é menos.

As assembleias de condóminos são normalmente lugares infestados pela discórdia e pela proverbial dificuldade dos portugueses em partilharem um sentido de comunidade. Mas há dois deputados do PS que lhes querem outorgar o poder de decidir se uma determinada fracção do prédio pode ou não ser alugada a turistas. Dá para imaginar o pesadelo? A vizinha do segundo direito a contrariar o senhor do segundo esquerdo apenas porque não fecha a porta da rua ou não apaga as luzes? O dono do 1ªA a dissertar sobre os custos ou benefícios do turismo com o proprietário do 2ºA tendo na cabeça o choro dos bebés ou o entusiasmo das intimidades? Sob a pena dos deputados Carlos Pereira e Filipe Neto Brandão, o PS abriu um saco de gatos de onde não há-de sair nada de bom. Mas o seu gesto teve um mérito inquestionável: o de obrigar os grupos parlamentares e o país a discutirem com mais cuidado o impacte que a explosão do turismo começa a ter nas nossas cidades. Que é como quem diz, nas nossas vidas.

O pano de fundo que orienta a discussão há-de afinar pelo diapasão da ideologia. É lógico. E incontornável. Entre os que fazem apelos à regulação e os que censuram as tentativas de se “matar a galinha dos ovos de ouro”, ou, por outras palavras, entre a intervenção pública e o laissez faire dos mercados haverá muitos e bons argumentos para considerar. Porque, na prática, o que está em causa é delicado, quase cirúrgico: como manter o crescimento e a dinâmica do turismo sem comprometer o direito de os portuenses viverem no centro do Porto e os lisboetas no centro de Lisboa? Desenganem-se os que pensam que basta um decreto para resolver um problema novo, complexo e fracturante; desiludam-se os que acreditam que as coisas se vão ajustando, que não é precisa legislação, nem medidas de incentivo ou desincentivo fiscal, que é possível conciliar o melhor de dois mundos. Não é.

O proibicionismo de inspiração estatal é pernicioso, mas a absoluta desregulamentação que institui o virar a cara ao problema não o é menos. O que hoje se passa nas nossas grandes cidades é uma mudança de modelo onde não cabem os moradores nem o conceito de habitação permanente. É uma ruptura que abre oportunidades, mas que cria zonas cinzentas onde valores como o da pertença e da cidadania e direitos como o da habitação ameaçam submergir. Como escreveu a deputada socialista Helena Roseta, “não podemos fechar os olhos à mudança vertiginosa que está a ocorrer nos centros das nossas cidades, onde uma sensação de ameaça e desamparo começa a apoderar-se de muitos moradores”.

O Novo Regime de Arrendamento, que, embora de uma forma controlada, faz entrar um número crescente de casas e apartamentos no mercado livre, está a inspirar os senhorios a legitimamente trocar rendas estáveis e duradouras por alugueres de fins-de-semana ou de semana muito mais bem remunerados. Há centenas (milhares?) de casos em que os alugueres só se renovam com os preços duplicados ou não se renovam de todo. Há famílias enraizadas nos bairros centrais, de classe média ou nem tanto, que estão a ser empurradas para fora dos espaços onde criaram laços com a vizinhança, com o comércio local, com os serviços públicos, como os centros de saúde onde têm o seu médico, ou as escolas.

Fechar os olhos a este problema faria sentido se ele fosse inevitável ou se o cenário que lhe sucede fosse absolutamente inatacável do ponto de vista do interesse público. Não é. Uma cidade viva, com moradores autênticos, onde se respira o espírito de bairro e a idiossincrasia dos seus espaços comuns é um bem público de primeira importância. Desistir desses espaços de cidade é desistir de uma certa forma de ser e de estar. O alugamento turístico é bom para o emprego e para a economia do país, mas a protecção dos cidadãos que durante anos ou décadas se enraizaram em determinados lugares do espaço urbano é bom para a sociedade, para a cultura – logo também para a economia. Portugal não pode ser aquele país que, deslumbrado pelo novo mundo das plataformas da Internet, troca valores, respeito, dignidade, direitos e bem-estar de muitos pelo deslumbramento do crescimento rápido de um negócio. Depois da eucaliptização das nossas florestas, queremos fomentar a aridez do turismo no Barredo ou em Alfama?

Com os tribunais e discordarem entre si sobre os direitos dos condomínios em proibir o arrendamento turístico, com o PSD e o CDS a mandar afastar tudo e todos para que a marcha do seu progresso não seja importunada, com o PS dividido e o Bloco e o PCP estranhamente alheados dos interesses das famílias ameaçadas pela Airbnb e congéneres, o debate que faz falta não pode seguir o caminho proibicionista. Mas não pode cair na lógica do fatalismo nem no remoque dos que pensam que o Estado não tem a responsabilidade em intervir quando em causa estão riscos para os consensos como o que sustenta a ideia de que uma cidade viva exige pessoas com um grau de relação com o espaço superior ao vaivém do fim-de-semana prolongado.

Se o Estado não deve proibir os Airbnb desta vida, não deve também fechar os olhos à turistificação. Se deve medir com prudência os custos das regras impostas, não deve cair na tentação de acreditar que não há nada a fazer, que as políticas públicas na era da Internet devem ser resignadas ou inexistentes. Como está cada vez mais à vista de todos uma “falha de mercado”, com a oferta de habitação a pender toda para o turismo, com os preços do que resta a subirem em flecha para valores incomportáveis, o Estado tem o dever de se empenhar para repor o equilíbrio. Reduzir esses instrumentos ao anátema da lei que proíbe ou impõe regras é maniqueísta. Há muitas maneiras de se encarar o problema e de se lhe dar resposta. Por indução, através de políticas fiscais, por exemplo. Há formas de tornar os contratos de longo prazo mais atraentes e os alugueres de curta duração para turistas menos encorajadores do que actualmente. É tudo uma questão de opção. De política, portanto.

Sem chegar às campanhas públicas anti-alugueres aos turistas de Nova Iorque ou ao proibicionismo de Berlim, o Governo tem a obrigação de discutir fórmulas para dar resposta a este problema cada vez mais grave para quem vive nas grandes cidades. Dizer que mexer o que quer que seja vai acabar com o turismo ou com a reabilitação é um disparate. Dizer que o rumo actual é uma fatalidade do mundo moderno da Internet é renunciar ao ideal de cidade com o qual nos aprendemos a identificar. Uma vez mais, o que é importante é recusar o sectarismo das ideias absolutas que ou exigem a desregulamentação completa ou o mais refinado proibicionismo. Há um meio-termo para tudo e se hoje a lógica da procura externa do turismo está a favorecer as multinacionais ou os proprietários rentistas, isso não quer dizer que esteja necessariamente a favorecer o interesse geral. Nem só com dinheiro se fazem as cidades. Nem os países.  

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