O Grande Federador
Não é possível continuar a entreter os portugueses com a ilusão de que a União Europeia é um projeto estático no qual tudo pode continuar como está.
Escreveu Jean Monnet, um dos idealizadores do projeto europeu, que a poucos meses da assinatura do Tratado de Roma corria no seu círculo de amigos a ideia de fazer uma estátua ao “Grande Federador da Europa”. Só que o homenageado não seria Churchill, nem Schuman, nem Adenauer. Essa honra caberia antes a Gamal Abdel Nasser, o líder egípcio que uns meses antes, ao nacionalizar o Canal do Suez, dera uma lição ao mundo sobre o fim do ciclo imperial europeu.
Com um pedido de desculpas pela injustiça feita a Nasser, os europeus têm agora um outro Grande Federador com muito menos visão mas com bastante mais poder: Donald Trump. Já toda a gente percebeu que Trump não entende, não quer entender, e sobretudo não gosta da Europa. O novo presidente dos EUA sente-se muito mais à vontade sendo bajulado pelos príncipes sauditas, telefonando ao proto-ditador filipino Duterte ou recebendo os sequazes de Putin na Casa Branca. O entendimento que faz da NATO e do seu artigo 5º de defesa mútua, apenas utilizado uma vez na história (e pelos EUA), não anda muito longe da “proteção” como entendida pelos mafiosos: paguem primeiro, e depois logo verei se vos dou garantias de defesa mútua. Quanto ao Acordo de Paris para o combate às alterações climáticas, nem é bom falar.
Em tudo isto poderemos ver apenas a passagem da hipocrisia sonsa de anteriores lideranças americanas para uma hipocrisia orgulhosamente desavergonhada. Seja como for, a conclusão já vem tarde: enquanto durar a administração de Donald J. Trump, a Europa não poderá contar com ela; depois de acabar, a União Europeia já terá de ser uma coisa muito diferente.
Quem não demorou a entendê-lo foi Angela Merkel, que ontem o disse de forma invulgarmente clara aos seus apoiantes na Alemanha: “o tempo em que podíamos depender completamente de outros acabou”. “Essa foi a experiência que tive nos últimos dias”, acrescentou, referindo-se às cimeiras da NATO e do G7. “Os europeus têm de tomar o seu destino nas suas próprias mãos”, concluiu.
Ora, Merkel deve saber que mesmo a poderosa e rica Alemanha não representa mais do que um por cento da população mundial. Em França há um presidente que parece não ter ilusões sobre a suposta grandeza do seu país, quando isolado. Nenhum destes dois países pode valer por si só no plano global; e mesmo os dois juntos valem pouco sem a UE.
Vai demorar um pouco até que se entenda a reviravolta dos últimos meses. O Brexit, em primeiro lugar, não tem funcionado como o lançar de uma âncora que puxasse a UE para baixo, como muitos esperavam, e talvez se venha mais a revelar como o largar de um lastro. Trump, em segundo lugar, demonstrou como a hegemonia americana estava tão fragilmente dependente de um sistema político corrompido e bloqueado. O sistema internacional está à deriva. Não se pode ser apanhado sem estratégia numa hora destas.
E Portugal? Este é o momento de fazer um debate clarificador. Quem esperava pelo colapso da União Europeia deve talvez explicar-nos o que fazer se vier aí um cenário de maior integração europeia. Quem acha que Portugal deva ficar de fora do projeto europeu deve ter coragem de o dizer claramente, e de propor a sua alternativa para o país (o Brasil de Temer? a Angola de José Eduardo dos Santos? o Reino Unido do Brexit? um caminho exclusivamente nosso? e, nesse caso, qual?). Quem acha que Portugal deva ser parte ativa do debate europeu, deve também apresentar a sua visão da UE: uma versão assente num diretório de países ou a defesa vigorosa de uma democracia europeia?
Só não é possível continuar a entreter os portugueses com a ilusão de que a União Europeia é um projeto estático no qual tudo pode continuar como está. Seria uma tragédia para o país que prevalecesse essa opinião cómoda e fatalista que, no fundo, retiraria ao país a possibilidade de uma verdadeira escolha sobre os cenários do seu futuro.