Para onde fica a guerra, Brad Pitt?
Com Máquina de Guerra, David Michôd inspira-se na história verídica de um general caído em desgraça, interpretado por Brad Pitt, para falar do mundo de hoje.
“Tive sempre consciência de que a maioria das pessoas viu os meus dois filmes anteriores em casa”, diz pragmaticamente o realizador australiano David Michôd, 44 anos. “Há algo de extraordinariamente libertador em não ter de ver a minha carreira depender do dinheiro que faço no primeiro fim-de-semana de exibição. É quase garantido que mais gente vai ver este filme do que viu os meus dois outros filmes” — a sua estreia, Reino Animal (2009), sobre uma família criminosa de Melbourne, tornou-se um filme de culto que em Portugal se estreou com quatro anos de atraso; o segundo, A Caçada (2014), nem chegou a estrear-se por cá.
Máquina de Guerra, recém-estreado no serviço Netflix, foi inteiramente financiado pelo gigante americano do streaming, sem passar pelos grandes estúdios nem ter tido estreia em sala. Não é o primeiro filme produzido directamente pela Netflix, mas é o filme que melhor desenha as ambições do serviço a subir à “primeira liga”: uma longa-metragem de grande perfil e orçamento confortável, com Brad Pitt, uma das poucas vedetas globais dos nossos dias, no papel principal, e a presença de Tilda Swinton, Ben Kingsley ou Meg Tilly em papéis secundários. É uma narrativa ficcionada a partir da história verídica do general Stanley McChrystal, enviado para o Afeganistão para “vencer a guerra” e responsável pela “escalada” de tropas americanas, que caiu em desgraça depois de uma reportagem demasiado reveladora de um jornalista da Rolling Stone (o falecido Michael Hastings, cujo livro sobre a “semana de campo” que passou com o general serve de base a Máquina de Guerra). Por questões legais, a personagem chama-se aqui “Glen McMahon”.
Máquina de Guerra é o tipo de filme que Hollywood ainda vai financiando quando tem um nome de peso no cartaz — aqui é Pitt, mas poderia ser George Clooney ou Matt Damon —, sobretudo na categoria cada vez mais esquiva do “filme de prestígio” apontado aos Óscares. Mas é significativo que tenha contornado, desde o início da sua produção, o sistema tradicional. David Michôd diz que, mesmo sabendo que o filme nunca foi pensado para ser visto em sala (apesar de ir ter uma estreia restrita em alguns territórios), “isso não mudou nada”. “É um filme que talvez não tivesse sido financiado pelos grandes estúdios no clima actual. O que eles estão a produzir não sai de um tipo muito limitado. E o que eu quis fazer com Máquina de Guerra era algo tonal e formalmente invulgar, politicamente contencioso.”
Ao longo de 15 minutos de conversa, Michôd, antigo jornalista e crítico que adaptou ele próprio o livro de Hastings, repetirá várias vezes ter querido fazer um filme de guerra “que abrangesse todo o seu absurdo, o seu horror e a sua brutalidade, que fosse ao mesmo tempo uma sátira mas fosse também escuro e negro e brutal”. É uma insistência que tem algo de conversa de marketing bem ensaiada; Michôd não se pode ter esquecido das sátiras que foram sendo feitas desde os tempos da Guerra Fria e sobretudo no pós-Vietname, desde o Artigo 22, de Mike Nichols, a Três Reis, de David O. Russell.
Mas é verdade que o que ele tenta em Máquina de Guerra não é coisa que Hollywood arrisque muito. O tom quase coloquial do filme, que começa como sátira escarninha “contado ninguém acredita” para escorregar aos poucos para “tragédia de um homem ridículo”, está mais próximo do meio-termo entre a comédia e o drama que Adam McKay atingiu com A Queda de Wall Street. Filme que, não por acaso, também era baseado num best-seller que contava uma história verídica e também era oriundo da mesma produtora — a Plan B Entertainment de, surpresa!, Brad Pitt.
Não é um acaso: foi a companhia, conhecida pelo seu apoio a autores em ascensão (Barry Jenkins com Moonlight, Steve McQueen com 12 Anos Escravo, James Gray com A Cidade Perdida de Z), que desenvolveu o projecto e que convidou Michôd a realizar. “A verdade é que eu andava há muito tempo à procura do projecto certo para falar das guerras do Afeganistão e do Iraque”, confessa o australiano. “Mas não conseguia encontrar uma história que eu quisesse contar, e que também soubesse que ia conseguir ser produzida. Foi aí que a Plan B me enviou o livro de Michael Hastings, e eu soube imediatamente como o adaptar.”
A definição de Michôd é “esquizofrenia tonal” — “tem que ver com comprometer-me a fundo com ambos os tons do filme e não os tentar misturar num único. O filme é, em parte, sob a desconexão entre as altas instâncias militares e as tropas no solo, e isso implicava mantê-los separados, em mundos diferentes. O Brad e os actores que interpretam a sua equipa tinham de estar num mundo, o que implicava correr riscos, sobretudo ao nível da comédia; os actores que interpretam as tropas no terreno em Helmand tinham de estar num outro mundo, num filme de guerra sincero. O meu papel era manter esses dois tons independentes e depois, na montagem final, equilibrá-los de uma maneira que não traísse nenhum. Ia ser um desafio, mas era o modo perfeito de fazer um filme que não fosse só sobre a loucura da guerra, mas também sobre o mundo em que vivemos.”
Michôd insiste bastante nessa ligação, até porque Máquina de Guerra tem muito em comum com Reino Animal — são filmes sobre as “bolhas” insulares em que grupos muito íntimos, de famílias criminosas a unidades militares, se deixam isolar. “De certo modo, essa ideia da bolha é um dos temas que dou por mim a tratar”, admite o realizador. “A maneira como alguns tipos de personalidade interagem uns com os outros acaba por formar um todo que pode escorregar muito facilmente para a ilusão. Isso parece-me aliás uma das questões centrais na instituição militar americana, em parte porque é uma organização tão gigantesca que há bolhas a formarem-se constantemente. Mas interessava-me sublinhar que esse mundo militar em que a personagem do Brad vive tem muitos paralelos com as vivências pessoais de cada um de nós. Eu próprio, em dados momentos da minha carreira, dei por mim no plateau em pânico, em stress, a perguntar-me por que raio estou a fazer isto, a sentir-me prisioneiro da minha própria ambição. Mas sei porque estou a fazê-lo. Porque tomei uma decisão, há 20 anos, de fazer do cinema a minha carreira, e não sei que mais fazer com a minha vida. E é a mesma coisa com o general McMahon.”