Netflix contra Hollywood
Máquina de Guerra surge apenas no serviço de streaming depois da celeuma de Cannes. Mas o problema não é tanto a “excepção francesa” como um sistema hollywoodiano cada vez mais fechado.
Vale a pena repetir o que David Michôd disse ao PÚBLICO — a sua consciência de que os seus dois filmes anteriores foram mais vistos em casa do que em sala, e que Máquina de Guerra, apenas por surgir directamente em streaming, vai ser o mais visto dos três. A afirmação ficou por completar, contudo, porque, depois de uma pausa, Michôd diz: “Não sei ainda o que é que isso quer dizer.”
O lançamento global de Máquina de Guerra é a nova “linha vermelha” nas guerras surdas que opõem o meio tradicional do cinema (com as suas janelas rígidas entre sala, televisão e VOD) e aos “disruptores tecnológicos” que vêm abolir essas fronteiras. Ainda há poucos dias, a “fractura” foi publicamente exposta em Cannes: duas produções Netflix, Okja, de Bong Joon-ho, e The Meyerowitz Stories, de Noah Baumbach, estiveram na competição principal, e a indústria francesa ergueu-se em armas, porque os filmes não iriam ter estreia comercial em França. (Mas ninguém falou de Wonderstruck, de Todd Haynes, co-produzido pelo outro grande player do streaming, a Amazon, que tem como política mostrar os seus filmes primeiro em sala...)
A discussão de Cannes foi provocada pela “excepção cultural” do sistema francês, cujas “janelas” traçam um percurso de três anos, a partir da estreia de um filme em sala, para as progressivas disponibilizações em DVD, televisão de sinal aberto ou por assinatura, serviços de video on demand (VOD) e streaming. No resto do mundo, os intervalos são menores, mas privilegiam sempre a sala como ponto de partida. Só que, enquanto a indústria discute quando é que um filme pode ser autorizado a chegar ao streaming, nada se faz para resolver os problemas da distribuição e da exibição, iguais em França ao resto do mundo: uma produção muito superior ao que se consegue escoar em sala, um quase-monopólio dos estúdios americanos ou das produções locais de grande orçamento.
A questão não é simples, não pode ser colocada simplisticamente, e não é simples de resolver. Num longo inquérito publicado no site The Ringer, Sean Fennessey falava com uma série de jovens realizadores americanos, cruzando os que haviam feito o circuito tradicional de festivais e estreia em sala com aqueles que viram os seus filmes lançados directamente em streaming. Todos os realizadores com quem Fennessey falou, mesmo aqueles que tinham começado pela sala, sublinhavam que o streaming tinha feito mais pelas suas carreiras e pela possibilidade de continuar a trabalhar.
Por outro lado, cada vez mais filmes são lançados pelos próprios distribuidores simultaneamente em sala e em plataformas de VOD, numa estratégia que tem vindo a diluir a velha noção de que um filme que não se estreie em sala é de algum modo um filme “menor”. Para Roy Price, da Amazon, citado por Fennessey, a passagem pelas salas de cinema continua a emprestar “legitimidade”, para anular a percepção do “telefilme” como coisa menor, descartável, que não é bem cinema. Mas esse deixou de ser um argumento — porque um cineasta independente respeitado nos EUA como Joe Swanberg passou a produzir directamente para a Netflix, ou porque a Amazon colocou o produtor veterano Ted Hope à frente da sua divisão de cinema. E porque a própria dimensão de muitos mercados impede a chegada às salas de muitos filmes que podem perfeitamente ter lugar na longa cauda do streaming.
O que Máquina de Guerra nos diz é que o streaming já não se vai limitar ao cinema “pequeno”. Quer lutar com os grandes meios, quer-se substituir aos estúdios que deixaram de se interessar por produções para a qual não podem garantir um retorno financeiro. Este é um filme que, há 30 anos, se encaixaria nos mapas dos grandes estúdios — estúdios hoje mais interessados em alimentar franchises e merchandising, numa “integração vertical” de “propriedade intelectual”. Contra isso, a Netflix e a Amazon pegam nesse testemunho abandonado da diversidade de produção, contratando inclusive executivos com experiência no cinema e investindo valores significativos (o jornalista Frédéric Filloux apontava que só a Netflix previa investir em produção em 2017 seis mil milhões de dólares, contra sete mil milhões investidos em produção em 2015, pelas seis grandes majors americanas, todas somadas...). O verdadeiro problema, vai-se a ver, não é França, não é Cannes, não são as janelas. O verdadeiro problema é Hollywood. Os próximos passos da guerra vão ser interessantes.