Habitação permanente e alojamento local
Não creio que um fenómeno como este se resolva com leis “cirúrgicas” como a que o PS acaba de propor.
A iniciativa “cirúrgica” de deputados do PS sobre o alojamento local, obrigando a ouvir os condomínios, está a suscitar reacções opostas. Entre as associações de proprietários, a Associação Lisbonense de Proprietários (ALP) critica veementemente o projecto de lei e a Associação Nacional de Proprietários (ANP) concorda com ele. A Associação de Alojamento Local (ALEP) considera a proposta inconstitucional e desajustada.
Em matérias como esta, que têm impactos diferentes e até opostos, é impossível o consenso. O Alojamento Local (AL) é sem dúvida uma forma de promover o turismo e de permitir a pequenos proprietários um rendimento adicional. Mas a conjunção de factores que levou ao disparar desta modalidade de alojamento está a ter efeitos negativos em zonas históricas de várias cidades, contribuindo para a rarefacção e sobreaquecimento do mercado de alojamento permanente. Há freguesias em que os moradores estão a ser expulsos por mudança de proprietários, cessações de contratos, despejos e transformações de uso, com as novas rendas a atingirem valores inalcançáveis ou mesmo a deixarem de existir. Há quem já só consiga arrendar casas à semana.
Se não podemos ignorar os impactos positivos do AL, quando é motor da reabilitação urbana ou é gerido por pequenos proprietários individuais que procuram respeitar o direito ao sossego dos vizinhos, também não podemos fechar os olhos à mudança vertiginosa que está a ocorrer nos centros das nossas cidades, onde uma sensação de ameaça e desamparo começa a apoderar-se de muitos moradores. Queremos cidades abertas e cosmopolitas, mas é preciso salvaguardar os seus habitantes e atrair novos residentes permanentes.
Perante esta equação difícil, os municípios estão como David perante Golias — as pressões no mercado imobiliário, financeiro e turístico são globais, as respostas das câmaras são meramente locais. As mudanças estão a ser muito rápidas e o desequilíbrio é evidente.
Não creio que um fenómeno como este, em que as plataformas de interacção entre oferta e procura também desempenham um papel decisivo, contribuindo para a sua expansão e aceleração, se resolva com leis “cirúrgicas” como a que o PS acaba de propor. Para legislar melhor, temos de conhecer bem os problemas, estudar os seus impactos, sobretudo quando são contraditórios, e ouvir as partes interessadas. Não foi este o caminho agora seguido pelo projecto de lei do PS e é pena.
Mas o debate está aberto. A este projecto de lei irão certamente seguir-se propostas dos outros partidos e será no Parlamento, na discussão entre todas as iniciativas, que poderá chegar-se a uma lei que seja útil e tão justa quanto possível. Para os que acreditam que as leis só atrapalham o mercado, respondo que em muitas cidades da Europa e dos EUA esta matéria está a ser alvo de propostas políticas de intervenção, umas mais radicais que outras, face ao alastramento vertiginoso do AL que faz diminuir perigosamente o mercado de habitação permanente e acessível, pondo em causa a própria sustentabilidade urbana.
Estamos, em minha opinião, perante uma clara falha de mercado do arrendamento urbano, que a liberalização do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) levada a efeito pelo Governo anterior não foi capaz de evitar. A solução não passa por sucessivas alterações pontuais do NRAU, nem por emendas cirúrgicas de outra legislação.
A nossa Constituição estabelece, no seu artigo 65.º, que “o Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria”. O acesso à habitação própria absorveu, do final dos anos 80 até ao século XXI, 73,3% do investimento público através da bonificação de juros. Os incentivos ao arrendamento consumiram apenas 8,4%. É este desequilíbrio prolongado das políticas públicas que, somado às recentes transformações do mercado, tem de ser questionado.
É preciso encarar esta temática de forma transversal — a fiscalidade, as políticas sociais, o ordenamento do território e das cidades, o papel do Estado e dos municípios e o acesso a informação de mercado transparente e credível são aspectos que não podemos ignorar. A questão não é apenas de habitação — é de convergência nas políticas e de harmonia nas cidades. Mais do que propor medidas avulsas, temos de identificar o que tem de ser mudado ao mesmo tempo em várias políticas públicas. É este o debate que importa e é cada vez mais urgente.