Hong Sang-soo e Bruno Dumont, estados de graça em Cannes
Hong sang-soo na competição com The Day After, Bruno Dumont na Quinzena dos Realizadores com Jeannette, l’enfance de Jeanne d’Arc: do íntimo ao extático.
Há um ano, em Cannes, Hong Sang-soo escolheu em dois dias um restaurante chinês para fazer o seu filme. Era pequeno, íntimo. Tinha escolhido os actores, entre eles Isabelle Huppert que estava na Croisette a apresentar Elle, de Paul Verhoeven. O cineasta coreano precisa apenas de “duas coisas” para começar, precisa de actores e de um cenário – que como ele diz é sempre “muito repetitivo”: é um café, um local para beber, e é a natureza em segundo plano. É do encontro com alguém – um actor –, durante conversas que não chegam a ser ensaios porque não há sequer argumento escrito, que espera uma intervenção na sua memória, no seu passado, na sua intimidade, e que isso o faça escrever.
“São duas coisas muito físicas, um cenário e uma pessoa, e a partir daí trata-se de abrir, de progredir para além da presença física”. Não escreve para gente com uma carreira, escreve para pessoas. “Cada pessoa tem tanta coisa em si, não é preciso mais se houver uma conexão entre nós. E com o diálogo espero que tudo isso venha cá para fora”. (Sobre os sítios para comer e beber: o restaurante chinês de Claire’s Camera foi visitado à hora do jantar de domingo por vários jornalistas, depois da projecção do filme. Agradeceram a Hong Sang-soo, na conferência de imprensa: é bom.)
É em Claire’s Camera que a personagem de Huppert, respondendo a uma assistente de um realizador, que foi despedida por se ter envolvido com ele, sobre a razão por que esta sempre a tirar fotografias, diz: permitem ver lentamente, regressar a uma imagem é compreender melhor. É nessa frase que se pensa durante The Day After, outro filme de Hong Sang-soo. Sim, tem dois filmes no festival, aquele que rodou em Cannes fora de concurso, e este, The Day After, que está na competição, é a preto e branco e é sobre a confusão de sentimentos e esquecimentos. O fio de conjugalidades e traições que é rumor de fundo em Claire’s Camera é o primeiro plano de conversas e confrontos em The Day After: as mulheres da vida e as mulheres que (não) ficaram na memória de um editor, as que ele engana e as de que ele se esquece, o falhanço dos belos ideais perante a realidade. Ele chora varias vezes, é como um grito. Mas naquela resposta de Huppert em Claire’s Camera algo fala do íntimo do cinema de Hong Sang-soo, dos seus enquadramentos, dos zooms, da duração das sequências, das repetições e variações de cenas: para perceber o que nos escapa. É uma progressão sensorial que abeira os tempos e a musicalidade do cinema do coreano do fracasso humano. Mas, nesse percurso, o cinema é revelação. Numa miniatura cinematográfica, pressente-se o monumental. Escrevemos isto a pensar em The Day After, naquela personagem masculina, na sua cobardia e naquele choro. Agora vejam o que Hong Sang-soo respondeu quando lhe fizeram a mesma pergunta que uma personagem do filme faz: por que vive, vive porquê?
“Tenho desejo de entender, sair da confusão que me rodeia, o que não quer dizer que saiba analisar essa confusão de onde quero sair. O facto é que não sei nada de nada. Não sei qual a verdade absoluta. A única questão a pôr é: como posso viver melhor? O que posso fazer, apenas, é concentrar-me numa coisa pequena em profundidade e esperar que a partir daí isso se expanda.”
Bruno e o êxtase
A expansão da graça em Cannes: Bruno Dumont, que trabalha a partir da harmonia misteriosa entre rostos e paisagens, continua também a provocar êxtase mistico. Jeannette, l’enfance de Jeanne d’Arc, depois de O Pequeno Quinquin, em 2014 (e, tal como esse, uma produção para a Arte) e Ma Loute, em 2016, mostra fôlego de reinvenção, ausência de medo perante o improvavel e isso não so lhe fica bem como lhe sai bem – aplausos entusiásticos na Quinzena para esta comédia musical a partir de duas exaltaçoes de Charles Péguy (1873-1914), Jeanne d’Arc e Le Mystère de la charité de Jeanne d’Arc.
O texto foi cantado na rodagem, e praticamente num único cenário, pelos actores, entre os quais duas miúdas que interpretam Joana d'Arc aos oito e aos 16 anos, a idade do despertar, quando se mete em marcha para fazer a guerra – “coisa que hoje não esta ausente de actualidade”, dizia o realizador a uma reportagem de rodagem saída na imprensa francesa – e libertar a França da opressão inglesa, missão encomendada pelos santos. A musica é da autoria de Igorrr, que vai do electro ao heavy metal, mas há espaço para “rapar” sem musica o texto de Peguy. As coreografias são de um homem do circo e da mímica, Philippe Decouflé. É uma espécie de Musica no Coração bressoniano, descrição absurda, obviamente, até porque este filme não aproveita nada os favores de qualquer bizarria. Pelo contrário, faz dos improváveis encontros uma série de dificuldades que leva o espectador a negociar o seu caminho em direcção à sua graça.
Ja Yorgos Lanthimos, que em 2015 recebeu o Prémio do Juri de Cannes por A Lagosta, parece, pelas vaias, ter-se desgraçado em 2017 com The Killing of a Sacred Deer, história de um adolescente que se infiltra na família de um cirurgião cardiologista (Colin Farrell, Nicole Kidman e os filhos) para se vingar das negligências que levaram à morte do seu pai. Admira-se sempre quando o pacto de um realizador com as suas personagens e os seus motivos é inabalável, suspende as descrenças. Ainda por cima, no caso dos filmes de Lanthimos, as personagens explicam-se pouco mas o seu silêncio é sinal de um voluntarismo e de uma abnegação que podem ser comoventes. Começa por ser esse o pacto com a família de The Killing of a Sacred Deer e do intruso. Mas Lanthimos entusiasma-se de tal forma com a sua retórica de castigo e de “olho por olho, dente por dente” que os espectadores perdem o filme. E Lanthimos fica sozinho com ele: não entra ninguém, os sinais de involuntária paródia são estridentes.