A nossa forma de viver, segundo Michael Haneke
Como o cineasta que já ganhou duas vezes a Palma de Ouro diz, não é possível falar de “nós” sem falar do mundo. Mas Happy End fala do mundo falando de “nós”.
“Não há um tema do filme”, diz Michael Haneke. Não. Mas não era este o filme que Michael Haneke fora fazer a Calais, com Jean-Louis Trintignant, Isabelle Huppert e Mathieu Kassovitz, “sobre” a Europa e os imigrantes? É das coisas sedutoras de Happy End, o novo filme de um cineasta que pertence ao restrito grupo dos duplamente premiados com a Palma de Ouro (O Laço Branco e Amor, para além de uma série de outros prémios do palmarés de Cannes): o facto de não estar onde as informações e os resumos o davam, o facto de o espectador ter de encontrar o lugar do filme.
Ainda que o austríaco diga que o seu trabalho, como cineasta, seja sempre “cortar o mais possível para provocar reacção no espectador” — é essa, certamente, uma das maneiras de descrever o impacto do seu cinema —, Happy End é quase abstracto na sua construção. Não nos enganemos: está lá Calais, estão os refugiados, que têm visibilidade nas sequências finais, está a actualidade — até porque como Haneke diz, não é possível falar de “nós” sem falar do mundo. Mas Happy End fala do mundo falando de “nós”. “Que vivemos a nossa vida sem ligar ao que nos rodeia”, como dizia Haneke. Ou como sintetiza o dossier de imprensa, uma frase e nada mais, nem as habituais entrevistas e statements do realizador: “À nossa volta, o mundo, e nós, no meio, cegos. Um retrato da vida de uma família europeia burguesa.” Afinal há um tema, concede Michael Haneke: “A nossa forma de viver.”
São os Laurent, Jean-Louis Trintignant à cabeça, a decadência já a infiltrar-se na sua mente, a contar à neta como sufocou a mulher doente por piedade (o que Jean-Louis fazia a Emmanuelle Riva em Amor). Há outros pedaços de familiaridade e reconhecimento, que levam lá atrás, a 1992, a Benny’s Video, por exemplo. Mas o essencial é um movimento no escuro, a decifração de sinais, para descobrir as figuras e os espaços que as rodeiam e a relação que entre elas se estabelece. É uma aventura subterrânea, subtil e inquietante pela solidão, pelo egoísmo, pela falta de empatia. Um filme coral em que não pode haver grupo.
O essencial é, por exemplo, habitar os movimentos de cada intérprete, nunca a psicologia das personagens, que se ausentou, assim como o “reaction shot” se ausenta, porque, como um dos actores dizia, a reacção é da responsabilidade do espectador, ele é que sabe o que fazer com o seu pensamento, ele é que deve tirar as conclusões. E eles são a inevitável Huppert a que Haneke regressa (cúmplices em quatro filmes); Trintignant, pela segunda vez; as “estreias”, neste universo, Kassovitz (sempre actor inolvidável) ou Toby Jones, o tal que falou da ausência dos “reaction shots”. Valeu a pena ouvi-los contar, em conferência de imprensa, como se habita um filme de Haneke, ouvir Trintignant, que protagoniza o indiscritível final (até porque não se sabe se é “happy”), considerar que o nouveau roman, a sua aversão à psicologia, faz bem ao cinema do realizador, Huppert a equiparar o máximo de dirigismo dele e a liberdade deles, e o alemão Franz Rogowski a assumir que passou a rodagem a tentar encontrar a cena que Haneke tinha na cabeça, o filme que Haneke tinha na cabeça — o que é, afinal, a angústia da liberdade do espectador de Happy End.