Não se enervem, afinal é apenas arte e ela explica-se
Fizemos uma visita guiada à ARCOlisboa com o curador Paulo Pires do Vale. A feira vista letra a letra, palavra a palavra, à procura das relações entre a linguagem (e a língua em particular) e a arte.
Foi na companhia do fantasma de Ana Hatherly, a artista plástica portuguesa que morreu em 2015, que vimos a ARCOlisboa – a feira de arte contemporânea que está até domingo na Cordoaria Nacional. Artista da palavra, como já lhe chamaram, é a ela que o curador Paulo Pires do Vale dedica agora parte da sua vida, por causa de uma exposição que está a preparar. Por isso, quando lhe pedimos para nos guiar numa visita à feira, que traz 50 galerias nacionais e estrangeiras à longa nave da Cordoaria, o curador trouxe a sua circunstância, porque não faz sentido escolher só por escolher: “A relação entre a linguagem e a arte, a língua em particular, é uma lente possível para ver esta feira, porque há muita coisa com texto. Venho da filosofia e interessa-me muito o conceptual na arte, em que a palavra e o discurso ganham evidência.”
A caminho da primeira obra que nos quer mostrar, cita os livros de artista de Lourdes de Castro (ausente da feira), feitos em plexiglass com letras bordadas em fio de plástico, que mostrou na exposição da Gulbenkian em 2015, para exemplificar “como também pensamos os signos como imagens”. Paramos em frente a várias obras de Antoni Tàpies, expostas na galeria espanhola Leandro Navarro, para Paulo Pires do Vale mostrar o que está a tentar explicar através de Lourdes de Castro: “Há aqui qualquer coisa de escrita, mas que já está descontextualizado do discurso. É quase a ideia de graffiti, porque são palavras fragmentadas e já deixámos de saber o que são.” Na poesia visual, de que Ana Hatherly é um dos nomes pioneiros, “foi muito determinante esse lado matérico, sensorial, da própria palavra”.
Já na galeria brasileira Vermelho, o curador destaca a instalação Nove, Braille Ligado (2008), da dupla Angela Detanico e Rafael Lain. Linhas de luz unem visualmente os pontos da palavra “nove”, uma acção que costuma ser concretizada através do tacto. “O néon é para se ver e o braille para se tocar. Braille em néon é um absurdo.” A desconstrução de que o curador falava há pouco atinge mesmo a linguagem para cegos, numa troca de sentidos que questiona igualmente o uso que fazemos do corpo.
Nas galerias Mário Sequeira (Braga) e Horrach Moyà (Palma de Maiorca), a dupla Muntean e Rosenblum, tal como na obra do português João Louro que está na Cristina Guerra, usa o texto como uma legenda da imagem, à semelhança do cinema, afirma o curador: “Dá um sentido ao que estamos a ver ou desconstrói esse sentido, sendo só o significante sem o significado.”
Esta recuperação da narrativa, Paulo Pires do Vale encontra-a igualmente muito presente em Vasco Araújo, como se pode ver na obra telefonema#2 (2011): “Ele é um dos artistas que mais utiliza a palavra em território português. O texto para ele é muito importante.”
Na galeria espanhola Juana de Aizpuru, onde a escultura Even Larger Comma (2015), da dupla João Maria Gusmão e Pedro Paiva, figura uma vírgula com mais de um metro de altura em bronze, temos a saída do texto para o espaço: “Já não é só bidimensional, mas ocupa o espaço e faz-nos pensar como a linguagem define também o mundo. Vivemos dentro da linguagem, do discurso, porque as coisas são significadas pela língua. Como o Heidegger dizia, a linguagem é a nossa casa.”
Noutra língua
A interrogação sobre o sentido é mais óbvia quando não conhecemos a língua. Uma evidência para quem na galeria italiana Giorgio Persano se depara com a grande obra de cerâmica de Zena El Khalil, constituída por 108 peças e intitulada Mantra 3 (2017). “Vemos que é escrito em árabe, mas para nós é só desenho.” Ao lado deste conjunto de azulejos rosa, está uma folha de sala onde consta a tradução do que foi escrito por esta artista libanesa que quer falar de paz no Médio Oriente.
Na mesma galeria, está a obra The Real Thing 3 (2010), de Julião Sarmento, onde a palavra surge através do título de um livro de Raymond Carver; o dispositivo referencial, de uma obra que cita outra obra, também é utilizado nos trabalhos de Louro que podem ser vistos na galeria norte-americana Christopher Grimes.
Ainda na galeria italiana, estão as obras muito discretas de Michael Biberstein: “São muito subtis e no meio desta feira tornam-se quase invisíveis. O título da obra, Prospect Refuge Image, aparece no fundo da página ao centro. O que é interessante, e lembra-nos que os artistas deixaram de assinar as obras porque introduzir o nome na obra é colocar o nome como imagem. De tal maneira é assim que conhecemos a assinatura de Picasso e sabemos que Van Gogh assinava Vincent.”
Ao nível da palavra
Na galeria Filomena Soares, Paulo Pires do Vale vai à procura das tabelas das peças do escultor Rui Chafes para mostrar como os títulos acrescentam sentido às obras deste artista plástico que também é escritor e tradutor. A série das máscaras de ferro chama-se Doce e Mortal, enquanto a das colunas que mostrou na última exposição na galeria intitula-se Incêndio. No mesmo espaço, Pedro Barateiro ironiza, numa instalação de conteúdo político, com as palavras “economia relaxada”, enquanto Didier Fiuza Faustino nos mostra um “futuro” precário.
Já na galeria Múrias Centeno, Carla Filipe reflecte numa linguagem suja sobre o discurso artístico, introduzindo erros provocadores: “There are always doubts but also some certezas. […] Carla don’t stress, it’s only art.”
O stand que mais interessou ao curador foi mesmo o dos espanhóis Parra & Romero, com obras de Rosa Barba, Robert Barry, Stefan Brüggemann ou Adam Pendleton. Depois de olharmos para um misterioso e solitário “s” no trabalho de Pendleton, detemo-nos na instalação da italiana Rosa Barba. A que vemos em Lisboa, intitulada Only Revolution, lembrou-lhe a instalação que a artista fez sobre a rampa de entrada do pavilhão na última Bienal de São Paulo e que consistia apenas na projecção de uma luz branca acompanhada do respectivo barulho da máquina. Na ARCOlisboa, vemos um filme de 16 mm a rodar dentro de uma caixa de luz em que está inscrito um texto do matemático francês Poincaré. “A peça faz uma síntese da relação da escultura com a instalação, com o cinema e com o texto.”
Quando descemos ao nível da palavra – como nas obras de Robert Barry presentes por exemplo na Cristina Guerra, em que estas parecem fugir da superfície branca da pintura, ou na de Nuno Nunes-Ferreira, que cita o trabalho de On Kawara na Baginski –, já estamos numa situação de suspensão: “A palavra é imagem e cria-te uma imagem. Não nos dá um sentido imediato.” O mesmo se passa com o trabalho de Catarina Dias na galeria Vera Cortês, em que um conjunto de palavras cria um desenho ou em que uma imagem por cima de outro conjunto cria novos sentidos.
A série (Não) Ler, Maurice Blanchot, de Fernanda Fragateiro, artista que está na Baginski mas também na espanhola Elba Benítez, usa fatias de livros para encontrar desenhos na mancha tipográfica e mostra, como dizia o ensaísta evocado no título desta obra, que fica sempre algo para trás quando lemos: “Maurice Blanchot diz que há qualquer coisa que um livro não deixa ler, reduto de um segredo. Há sempre algo que está por ler.”
Para trás, e por ler, ficam artistas como Pedro Quintas, Filipe Marques, Priscila Fernandes, Adelina Lopes, Eduardo Batarda, entre muitos outros. Olhamos para a obra de Lawrence Weiner na Cristina Guerra e obedecemos ao texto impresso na parede: Lost & Found & Lost Again também é uma outra maneira de ver arte. E na porta ao lado, na exposição de Serralves, podemos sempre encontrar Ana Hatherly e Lourdes de Castro.