Já se vê a Palma ao ouvir 120 Battements par minute?
É um filme sobre os anos 90 das lutas do Act Up de Paris, ramo da organização internacional de luta contra a sida. O activismo forjou-se de forma visceral, eufórica e trágica.
É o primeiro filme da competição de Cannes a não fazer das personagens marionetas de um espectáculo — tivemos disso em Loveless, do russo Andrei Zvyagintsev, era também isso, e bastou, Jupiter’s Moon, do húngaro Kornél Mundruczo. É o primeiro filme não totalitário do concurso, é 120 Battements par minute, de Robin Campillo. Não podia ser de outro modo: é um filme sobre gente que quis controlar a sua história e para isso fez política na primeira pessoa. É um filme sobre os anos 90 das lutas do Act Up de Paris, ramo da organização internacional de luta contra a sida. Quando, depois do silêncio dos anos 80 que amarrou vítimas, familiares e amigos a uma epidemia, as palavras libertaram-se enfim, jorraram, e o activismo contra esse escândalo forjou-se de forma visceral, eufórica e trágica.
Estas palavras e esta memória são de Robin Campillo, activista do Act Up nesses anos, hoje realizador (em 2004, Les Revenants, em 2013, Eastern Boys) e argumentista, destacando-se a cumplicidade com Laurent Cantet em L’Emploi du temps, A Turma (Palma de Ouro de Cannes ), Foxfire e L’Atelier, também no festival, mas na secção Un Certain Regard.
Robin lembra-se como se fosse hoje — mas o filme sente que era impossível ser hoje. Há vários anos que tentava montar este projecto sobre uma época “crucial” da sua vida, as pessoas que conheceu e as que viu morrer, e um dia disse: “Il est temps.” E o que faz com o tempo é libertador: nem sinal à vista do pitoresco do filme de época e da sua reconstituição, antes uma construção no presente com os actores, uma negociação vibrante. Como disse o realizador em conferência de imprensa: um filme tem de estar sempre (nos cenários, guarda-roupa, diálogos) entre hoje e o passado para o espectador não sair do presente.
Teremos de chamar aqui A Turma, de Cantet, com discussões e debates de grupo que revelavam as personagens como o work in progress de uma exposição íntima e dos confrontos no espaço público, para dar uma ideia do que se passa com o filme coral que é 120 Battements par minute. O realizador revela que os métodos utilizados foram transportados da experiência de rodagem desse filme que valeu a Cantet uma Palma de Ouro em 2008 e ao seu argumentista um César: longos ensaios antes de a cena ser fixada, para os diálogos adquirirem a sua forma, rodagem com três câmaras em simultâneo, montagem a misturar os momentos mais crus e espontâneos de um actor/personagem nas primeiras takes e as suas cenas mais logradas.
Pessoas que não tiveram outra hipótese a não ser implicar o corpo na luta, até por o corpo, por causa da doença, estar já implicado, têm à sua altura um filme em movimento entre o pessoal e o colectivo, o pensamento e a acção, a agitação política e a festa, o documento e a fantasmagoria (porque é memória e intervenção dos mortos), com um equilíbrio e uma justeza à prova de falsidade.
Acção política
Act Up, organização formada em 1987, desígnio de acção política e de acção directa sobre os efeitos de uma epidemia, para minorar, na forma como defrontava a legislação e os poderes, a devastação de muitas vidas: diz Robin Campillo que não sabe como e onde possa existir hoje a luta política, não sabe como e o que pode hoje mobilizar as pessoas.
Há dias que se falava no 120 Battements par minute que ia chegar. A sua programação no primeiro sábado do festival, dia nobre para dar impacto às narrativas dos ecrãs de Cannes, é sentida como aposta dos programadores. A reacção na primeira sessão para a imprensa foi comovida. O resto pode ser História, sendo, claramente, um filme a contracorrente das manifestações de força que têm aparecido na competição de Cannes. Um parente deste movimento que 120 Battements par minute faz para, em momento de crise social, política e moral, utilizar a dúvida e a perda como propostas incandescentes de pensamento e de colectivo, teremos talvez de o ir encontrar na Quinzena dos Realizadores, no Fábrica de Nada, do português Pedro Pinho — porque na competição esse cenário com traços de aflição civilizacional tem sido campo para frias demonstrações. Depois dos filmes de Andrei Zvyagintsev e de Kornél Mundruczo, chegou o norueguês Ruben Ostlund com The Square. Utiliza o título e a proposta de uma instalação de que foi autor em 2014, num museu norueguês, em que testava o humanitarismo dos visitantes, o seu sentido do colectivo e a confiança — em que demonstrava a erosão desses ideais. O filme é exaustivamente conceptual, vê-se como as várias etapas de uma instalação: como se fosse a entrada num prolongamento de realidade virtual daquilo que terá sido apresentado no museu. A personagem principal é um curador, uma daquelas figuras cheias de autoconfiança e fragilidade em medidas iguais, e Ruben Ostlund vai criar-lhe dificuldades. Para mostrar que na diferença entre o que ele diz e o que ele faz está a impotência humana — coisa nórdica cruel e castigadora de fazer. A ironia mordaz do realizador de Force Majeure (2014) faz-se notar, o que é um alívio depois de Zvyagintsev e Mundruczo. Mas o campeonato continua a ser chegar ao objecto mais frio, pomposo e cínico que se conseguir — e chique culto. Aí é o próprio filme que se mostra em perda de humanidade.