Mário Carrascalão: o amigo dos indonésios de quem os timorenses gostam
Foi governador durante a ocupação indonésia, mas muitos compreendem a decisão e elogiam o “trabalho visionário”.
Mário Carrascalão, que morreu esta quinta-feira, aos 80 anos, após sair de casa para ir comprar os jornais do dia, foi governador de Timor-Leste durante dez anos quando a ilha era uma província ocupada pelos indonésios. Mas diplomatas portugueses e timorenses acreditam que, apesar de aliado do inimigo, era um “patriota” que “queria a independência”.
A prova, diz Antonito de Araújo, actual embaixador de Timor-Leste junto da CPLP, em Lisboa, é que depois do anúncio do resultado do referendo que, em 1999, deu a vitória à independência, “ele não foi para a Indonésia, não escolheu ir viver para a Indonésia”. Além disso, foi vice-primeiro-ministro de Xanana Gusmão após a independência e agora, um dia antes de morrer, foi condecorado pelo Presidente Taur Matan Ruak com o Grande Colar da Ordem de Timor-Leste.
"Mário Carrascalão foi um grande defensor dos direitos humanos. Durante a ocupação, tentou usar o seu poder como governador para defender os activistas timorenses", diz Constâncio Pinto, ministro do Comércio, Indústria e Ambiente, que nesses anos era, justamente, um activista pró-independência na clandestinidade. “Quando o conheci, percebi que ele era um patriota, um homem que gostava muito da sua terra. Não tenho a mais pequena dúvida de que, no dia do referendo, votou pela independência”, diz a eurodeputada socialista Ana Gomes, a primeira embaixadora de Portugal em Jacarta quando as relações bilaterais entre os dois países foram restabelecidas.
Antes de os indonésios abandonarem o território em 1999 — não sem antes queimarem 80% das infraestruturas — “ouvíamos que Carrascalão era ‘um vendido aos indonésios’, um ‘colaboracionista’”, lembra António Monteiro, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e que acompanhou de perto o dossier. “Mas fomos sempre ouvindo elogios ao seu trabalho, sobre como fazia pontes com os indonésios e como ajudou ao processo de sensibilização internacional, defendendo que Timor era mais do que a afirmação contra a Indonésia, era a afirmação de identidade.”
O embaixador Araújo dá dois exemplos: “Foi Carrascalão quem convenceu o ditador Suharto [no poder entre 1968 e 1998] a abrir as fronteiras. Com essa abertura, os timorenses saíram para estudar na Indonésia e os jornalistas estrangeiros entraram. Nesses dez anos, fez um papel que todos percebiam, incluindo a guerrilha e a Igreja. Ele queria a independência.” Pinto acrescenta: "Foi um líder visionário. Preparou recursos humanos e muitos deles, hoje, são membros do Governo timorense."
Ana Gomes está convencida que foi quando Carrascalão percebeu que “já não tinha espaço” e que os militares indonésios “não tinham respeito pela autoridade civil”, afastou-se. “Ele foi governador porque acreditou que essa era a melhor forma de poupar vidas timorenses. Teve sempre instintos democráticos e pluralistas.”
António Monteiro, que como muitos diplomatas portugueses conheceu “sempre melhor os timorenses que estavam do outro lado”, observa que nos meses antes e depois da independência, tensos e delicados, “Carrascalão fez parte do núcleo que procurou o clima de união”. Um “bom homem", resume Jaime Gama, que liderou as negociações com os indonésios que conduziram ao referendo: "A História acabou por não ajudar muito a sua história, mas deu-lhe a oportunidade de atravessar uma biografia fascinante, que o carácter hamletiano da personagem para sempre impedirá penetrar."