Ainda um pouco inebriado pelas memórias do aroma e da sinfonia tonal das flores daquela cerejeira simbólica que o Sr. Ernesto me tinha revelado, abri, após um pequeno-almoço de chá preto do Ceilão e de um pastel em forma de lua crescente que estamos condenados a designar em francês enquanto não conseguirmos recrutar para a nossa causa os bastantes representantes da indústria de pastelaria com sensibilidade para tanto, abro, sobre a toalha branca de damasco de algodão do Egipto – um branco da classe da neve mas com o benefício de um toque convidativo – um sobrescrito escrito por mão própria e entregue pelo nosso serviço de Correios, que vai sobrevivendo à rivalidade das fugazes mensagens electrónicas e cumprindo o seu papel nacional nesse somatório internacional que tem unido a humanidade mais eficaz e pacificamente do que a política e a religião.
Por falar em religião: agradeço ao Papa a vinda às comemorações do que se passou em Fátima em 1917, não só porque é uma honra receber uma figura tão emérita pelas razões certas, mas também porque, como efeito secundário da canonização de duas crianças pobres e inocentes, fez Portugal vencer o Festival da Canção da Eurovisão. Sem menosprezar a qualidade da composição e da interpretação da canção que representou os portugueses nem a imagem que o intérprete soube projectar artificiosamente de pessoa em condição de sem abrigo, excitando a compaixão dos nossos concidadãos europeus pelos desvalidos em geral, todos sabemos que 49 anos sem ganhar não se neutralizam com duas tretas, ainda para mais a cantar em português. Por isso não foi sem um certo frémito interior que vi a compositora resistir à tentação de interpretar a sua própria canção e os jurados da Espanha, França, Holanda e Reino Unido darem 12 pontos a Portugal, além do de Israel, a falar em português. Só por milagre...
Por falar em política: o que pensarão os eleitores ao ouvir e ler responsáveis políticos falar de “empreendorismo” e “competividade”, como foi, mais uma vez, caso recente? A falta de uma sílaba em cada uma das palavras (sim, queriam dizer empreendedorismo e competitividade, respectivamente, mas não lhes chegou a língua da assessoria) não indicarão também políticas falhas?... (por lapso, escrevi “o que pensarão os leitores”, quando deveria ter escrito “o que pensariam os eleitores, se não se estivessem completamente nas tintas para estes pormenores”. Peço desculpa).
Voltando ao manuscrito inserto no tal sobrescrito: em letra que já se não usa, isto é, juntando a legibilidade a uma elegância grácil, perguntava-me a sua autora se não me encontraria eu numa torre de marfim, inapelavelmente longínquo de tudo o que era real. Foi o suficiente para que o bocado de crescente de que se ocupavam os meus maxilares voluntariosos se embolasse e a garganta se fechasse mais automaticamente do que a agência da CGD em Almeida. Galhardo, o meu leal mordomo, a quem eu tinha feito ver as seis temporadas de Downton Abbey como curso de formação, julgando-me sufocado e saindo em minha defesa, assentou-me uma valente palmada (ou soco, não sei bem) entre as omoplatas, que é o equivalente vernáculo, nas nossas regiões serranas, à “manobra de Heimlich”, tão divulgada pelos argumentistas norte-americanos de séries de televisão, que são os novos Edisons. Restabelecida a respiração, recolhi momentaneamente à cama para que voltassem ao seu lugar as estrelas que me tinham ido parar aos olhos com aquele baque e para que me aplicassem uma pomada de polissulfato de mucopolissacarídeo, para regeneração do tecido conjuntivo.
É verdade que eu tinha uma torre em casa, mas não era de marfim, era do granito com que se construíram os castelos que mantiveram os amigos dentro e os inimigos fora enquanto fizemos um país e o defendemos, gritando, nos momentos difíceis, coisas inspiradoras como “alma até Almeida!”, na maior parte das vezes não querendo visar a administração da CGD. Era uma torre na qual eu tinha começado por instalar a minha oficina de desenho e pintura, mas tinha desistido, ao aperceber-me de como era trabalhoso repor, por exemplo, uma falta de essência de terebintina por aquela escadaria acima, e era agora sede do meu observatório. Dali tinha uma visão desafogada do universo, do dia-a-dia dos meus concidadãos, das suas raras glórias e das suas frequentes agruras, e até das casas de amigos e familiares . Em certos dias sem nuvens, conseguia mesmo ver-me a mim. Estou até a escrever um livro sobre isso.
Mas agora vou interromper porque tenho de ir levar a minha filha à escola e, pelo caminho, tentar convencê-la de que existe um mundo exterior ao telemóvel, de que fazem parte muitos habitantes, e ela e eu também. E que somos parentes. Principalmente para não se assustar quando herdar a minha colecção de livros. Mas quando peguei na mochila dela e enfiei displicentemente apenas uma das alças no meu braço direito e a icei, a trajectória da massa vezes a velocidade de superação da inércia ou assim causou-me um desconforto não inconsistente com a deslocação do meu ombro direito para parte incerta, acompanhada de incapacidade quase total para produzir fala articulada e mesmo respirar só por meio de expediente confundível com um misto de silvo e assobio. Mesmo assim, persisti no meu intento, para partilhar com a minha filha algum “tempo de qualidade”, como agora se chama nos programas da manhã das televisões. Felizmente, no meu regresso ao castelo o Galhardo esperava-me com uma maca, para me trasladar do carro para a cama, onde escrevo a presente crónica, com apenas um dedo da mão esquerda.
Correio Premente
De Remígio Galante, lugar de Trebilhadouro, freguesia de Roge, concelho de Vale de Cambra: “Tenho estranhado, entre tantos assuntos sem interesse especial, se me permite a franqueza, sem ofensa, que, até hoje, se tenha abstido de dar a sua opinião sobre a verdadeira identidade do Jack, “o Estripador”. Como reformado da função de guarda-freio do Serviço de Transportes Colectivos do Porto, além de ter conhecido muita gente suspeita a viajar de eléctrico, incluindo bastantes ingleses no Verão, no serviço para as praias, tenho agora muito tempo livre e gostava de ler uns bons livros sobre o assunto. O que me aconselha?”
Tem razão. Ainda não tinha falado sobre isso, nem sei bem porquê. Encaminho-o para o endereço do Case Book, que regista e identifica 31 suspeitos. Só conheço o livro Portrait Of A Killer: Jack the Ripper - Case Closed, em que a autora de romances policiais Patricia Cornwell defende a hipótese Walter Sickert. Em 2014, um artigo do jornal inglês Daily Mail online identificou o assassino como sendo Aaron Kosminksi. O processo de investigação é narrado no livro Naming Jack the Ripper, de Russell Edwards.