Tertium genus: nem pessoa, nem coisa
É pena que o legislador não tenha tido o arrojo de ir mais longe na iniciativa legislativa que alterou o estatuto jurídico dos animais.
Desde a Grécia Antiga à Modernidade, a problemática relativa à configuração do animal tem sido recorrente no Direito, na Ética, bem como na Filosofia, sob diversas perspectivas, com o desiderato de caracterizar a vida dos animais.
Em períodos não muito distantes, os animais eram considerados máquinas ou instrumentos destinados à utilização dos humanos, onde estava subjacente a ideia de supremacia deste sobre a Natureza, enquanto ser racional, que teve o seu apogeu no racionalismo cartesiano e kantiano e, ulteriormente, aquando do fenómeno da industrialização. A verdade é que, paulatinamente, o Homem foi-se divorciando da Natureza, exercendo o seu domínio (total) sobre o animal.
Por outro lado, o avanço científico veio confirmar a existência de uma “inteligência animal” que arruinou muitos conceitos éticos e morais da equação homem/animal. Recorde-se Edgar Morin que, no seu O Paradigma Perdido, foca este problema apresentando o Homem como um “ser natural” que faz parte integrante de uma Natureza em que coabitam no mesmo ecossistema os animais.
As mentalidades que prefiguravam os conceitos foram mudando e não é por sortilégio que, hodiernamente, se assiste a uma defesa e protecção dos animais, vertida em múltipla legislação comunitária e nacional. Concomitantemente, não se poderá ignorar a existência de um denominador comum existente entre o Homem e os animais, maxime nos animais dotados de sistema nervoso central e os vertebrados superiores: a capacidade de sofrer e sentir prazer.
Recentemente, o Parlamento português alterou o estatuto jurídico dos animais, apartando-os das pessoas e das coisas inertes, reconhecendo-se a sua natureza de seres vivos dotados de sensibilidade, passando a ter um estatuto próprio, criando-se assim uma terceira figura jurídica a par das pessoas e das coisas. Esta alteração legislativa consagra ainda uma tipologia de animais específica, dizendo a mesma respeito aos animais de companhia, estatuindo-se que devem ser “confiados a um ou ambos os cônjuges, considerando, nomeadamente, os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal e também o bem-estar do animal”.
A referida alteração teve, assim, por motivos de coerência axiológica-normativa, que alterar o status jurídico civil dos animais, diferenciando-os e autonomizando-os das “coisas”, não no sentido de os equiparar às pessoas, mas sim de lhes atribuir um estatuto jurídico que se coadune — minimamente — com a natureza sensível dos mesmos. Encontra-se assim vencida uma guerra há muito travada, reclamando soluções semelhantes ao ordenamento austríaco, alemão, francês e suíço, instituindo-se assim um regime proteccionista que confere não só direitos aos animais bem como aos respectivos proprietários. Por conseguinte, foi assim tempo de coragem intelectual, definindo-se civilisticamente a questão — ainda que timidamente — respondendo aos apelos da sociedade e da consciência colectiva.
Não obstante seja de louvar a iniciativa legislativa, refira-se que num momento em que está sobejamente demonstrado que a visão juscivilística não se adequa à realidade nem aos avanços científicos que proporcionam vasta informação sobre a sensibilidade e complexidade emocional dos animais, é pena que o legislador não tenha tido o arrojo de ir mais longe, modernizando globalmente o regime, permanecendo algumas questões ainda por responder. Resta saber se este reflexo legislativo — que há muito a sociedade reclamava — poderá servir de mote para trazer à liça mediática, para além da tauromaquia, temas como as condições de abate, a luta de galos ou as condições de espectáculos circenses.