A Virgem Maria tomou conta do guião durante séculos
Uma exposição no Museu de Arte Antiga, em Lisboa, mostra como se representou a Virgem durante séculos e como essa representação se foi alterando com a leitura que dela fazia a Igreja. Mãe e protectora, Maria foi-se tornando humana, disputando atenções com o próprio filho, na arte e fora dela.
É um painel muito pequeno, parte de um conjunto, pintado por volta de 1410. Nele se vê a Virgem rodeada dos apóstolos que parecem rezar e chorar. Maria morreu e nesta pintura de Taddeo di Bartolo representa-se a sua assunção de maneira invulgar – é Jesus que vem do céu para tomar as mãos da mãe nas suas, puxando-a para si enquanto ela olha para ele.
A exposição que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) inaugura no próximo dia 19, Madonna: Tesouros dos Museus do Vaticano (até 10 de Setembro), numa parceria inédita que permite reunir em Lisboa um lote de 73 obras que inclui pintura, desenho, escultura e artes ornamentais dos museus da cidade dos Papas, da Biblioteca Apostólica Vaticana, das galerias Borghese e Corsini, e também de colecções públicas e privadas portuguesas, tem “descobertas” como esta Ressurreição da Virgem de um dos mestres da escola de Siena e muito mais. Para aqueles a quem a Bíblia é familiar pode ser vista também como uma espécie de catecismo pendurado na parede, para os que não a conhecem é uma oportunidade para atravessar mais de 1500 anos da arte.
Madonna divide-se em dois grandes blocos, ocupando as galerias de exposições temporárias do piso térreo do museu. De um lado, quase 50 obras saídas dos acervos italianos (com um intruso português, Virgem com o Menino entre São Bartolomeu e Santo Antão, c. 1410, pintura do Museu Nacional de Frei Manuel do Cenáculo, Évora); do outro, mais de 20 de colecções públicas e privadas portuguesas, “peças de grande qualidade mas muitas delas pouco conhecidas”, diz José Alberto Seabra Carvalho, historiador de arte e comissário da exposição com Alessandra Rodolfo, conservadora dos Museus do Vaticano.
Mostrando obras que vão da antiguidade tardia ao século XX, tem como centro a figuração de Maria pela mão de grandes pintores italianos como Sano di Pietro, Fra Angelico, Rafael, Sassoferrato e Gentileschi, e está longe de ser uma exposição-pacote que os museus do Vaticano tenham sempre de malas feitas para viajar pelo mundo. Grande parte do que se vai ver em Lisboa está, por regra, em exposição, já que a Pinacoteca do Vaticano não tem praticamente obras em reserva, explica o também director-adjunto do MNAA.
Os contactos directos com Itália para a organizar começaram há ano e meio, precisamente porque o centenário de Fátima criava uma oportunidade imperdível ao tornar mais acessíveis os empréstimos dos museus e da biblioteca do Vaticano, e com estas instituições como mediadoras, os de outras entidades. “Era uma daquelas situações de ‘agora ou nunca’”, reconhece Seabra carvalho.
A Bíblia dos pobres
O culto de Maria só foi instituído no século V, mas começa antes entre as primeiras comunidades cristãs do Oriente e do Ocidente, como mostra o fragmento de um sarcófago de criança do século IV em que aparece representada a epifania, o encontro com os reis magos, e que a partir de sexta-feira se poderá ver em Lisboa.
Na pintura italiana dos séculos XIV e XV, as imagens de Maria multiplicam-se, feitas a partir das muitas histórias que sobre ela se contam, na sua maioria saídas dos textos apócrifos, os que ficaram de fora do cânone bíblico.
Na sala que no MNAA se dedica a este período, destaca-se claramente a pequena e preciosa pintura de Fra Angelico em que a Virgem aparece com o Menino Jesus e dois santos, e a de Álvaro Pires de Évora, pintor português que só está documentado em Itália, ambas da metade do princípio do século XV. Mas há também as obras de Taddeo di Bartolo (c.1362-c.1422) e três códices da Biblioteca Apostólica Vaticana, exemplares das diferentes tradições de outros tantos importantes centros de produção de iluminuras no final da Idade Média: Bolonha (Itália), Bourges (França) e Gante (Flandres).
“A história da vida da Virgem, que está praticamente ausente dos livros canónicos, é inventada à imagem da vida de Cristo. É uma construção literária, piedosa, que se amplifica também através da arte.”
A partir dos séculos XIII e XIV dá-se uma “explosão” na iconografia mariana porque, diz o comissário, há uma grande necessidade de imagens para fazer passar uma mensagem, ao contrário do que acontece sete séculos mais tarde: “Nesta época é preciso criar uma espécie de Bíblia dos pobres nos espaços de devoção e é aí que Maria começa a tomar conta do argumento, assumindo essa centralidade praticamente até ao século XIX.”
Ao longo da história, há mesmo períodos em que Maria chega a “ultrapassar” outros protagonistas dentro e fora da Igreja, sublinha Joaquim Caetano, historiador de arte e conservador de pintura de Arte Antiga: “A dor da Virgem perante Cristo morto torna-a humana e é essa dor que acaba, muitas vezes, por se sobrepor à da Paixão. É por isso que houve alturas em que, nalguns sectores da Igreja, o culto da Virgem se sobrepôs ao do próprio Cristo.”
Na sala seguinte, consagrada ao Renascimento e dominada, em parte, por uma réplica da famosa Pietà que Miguel Ângelo (1475-1564) fez para a Basílica de São Pedro, escultura em que a Virgem segura no colo o seu filho morto e em que se torna particularmente evidente o potencial de identificação dos crentes com Maria, as atenções têm forçosamente de ser partilhadas com três pequenos painéis de 1503 do “divino” Rafael Sanzio (1483-1520), o favorito do Papa Leão X. Foram feitos para a capela funerária da família Oddi, numa igreja de Perúgia, e mostram, escreve Cecilia Ruggeri no catálogo, como Rafael, que à data teria perto de 20 anos, se “individualizou e ainda como superou, através de uma síntese entre a firmeza das figuras de Perugino [o mais famoso dos pintores de Perúgia] e a riqueza composicional de Pinturicchio, ambos os artistas”.
Noutros espaços, a pintura de italianos como Sassoferrato, Orazio Gentileschi (numa cena sagrada que podia ser profana) e Federico Barocci (a festiva Virgem das Cerejas) convive, por exemplo, com a do flamengo Antoon Van Dyck, que na sua terna Virgem da Palha (1625-27) nos mostra Maria e o Menino Jesus numa atmosfera de grande intimidade e recolhimento, com a mãe a cobrir o filho adormecido com a ponta do lençol.
Chagall, o “óvni”
No pós-Revolução Francesa (século XVIII), com o surgimento dos movimentos laicistas e a extinção das ordens religiosas, a Virgem perde o seu lugar de protagonista na arte, um lugar que se deve ao papel que assume na narrativa da Igreja e que é uma constante ao longo da exposição – o de mediadora entre os crentes e o seu filho, o de protectora dos homens.
“A devoção à Virgem é uma coisa muito emocional e próxima”, diz Seabra Carvalho, já que todos sabem o que é uma mãe, todos podem ser sensíveis à ternura de uma mulher para com o seu filho acabado de nascer ou reconhecer-lhe no rosto uma dor imensa quando o tem no colo já morto.
Mas na exposição no Museu de Arte Antiga, não há apenas natividades e pietàs. Há diversos episódios da vida da Virgem, do nascimento à morte, imagens de Maria nas suas mais variadas declinações e pinturas em que aparece acompanhada por representantes de uma legião de santos. Há até um “óvni” do século XX a provar que a temática da Virgem continua até nós – um guache de Marc Chagall (1887-1985) feito em plena Segunda Guerra Mundial, quando o artista russo que vivera em Paris procurara já refúgio nos Estados Unidos por causa da perseguição aos judeus. Nele, o artista russo-francês toca um dos temas recorrentes na sua obra desde o começo do século, a crucificação, cena que lhe permite abordar o sofrimento contemporâneo tomando Cristo como símbolo universal de todos os martírios, explica Micol Forti no catálogo da nova exposição em Lisboa. “Na realidade, não sabemos se é Maria”, contrapõe o comissário. “O que se vê é uma mulher com o filho ao colo, de costas voltadas para Cristo na cruz.” Uma mulher que está ou esteve a amamentar, com umas casas cobertas de neve e chamas ao fundo. Chagall, para quem a Bíblia era “a maior fonte de poesia de todos os tempos”, escreve Forti, via na pintura inspirada neste livro sagrado uma possibilidade de “restituir à arte uma virtude pedagógica, um significado social”.
O Chagall é visível da sala com os relevos em mármore do século IV e com o pluvial inglês (uma capa litúrgica) de finais do XIII com cenas da vida da Virgem. “Esta convivência de épocas diz ao visitante que o culto da Virgem começa antes de ser oficializado e, tendo logo expressão na arte, produz uma imagética que persiste.” Que persiste até ao começo do século XX e à chegada dos modernistas, momento em que a pintura enquanto figuração se vai transformar radicalmente, acrescenta o historiador de arte.
“Ainda há artistas que a representam, claro, mas no século XX as imagens são menos necessárias porque tudo na vivência da fé se torna mais espiritual e estilizado. A arte religiosa que hoje conta, salvo algumas excepções, seguiu outras vias mais inovadoras e mais audazes, não tem figuras”, diz Seabra Carvalho. A figura de Maria vai desaparecendo progressivamente devido à complexidade teológica que o concílio do Vaticano II (1962-65) impõe, levando a uma “devoção mais intelectualizada”.
A mulher ideal
Na galeria com as obras saídas das colecções portuguesas, para além da monumental Adoração dos Magos (c.1580-90), de Jacopo e Domenico Tintoretto, pai e filho, há ainda a destacar, por exemplo, A Virgem, o Menino, São José, Santa Ana e São João Baptista Menino (século XVI?), uma pintura tradicionalmente atribuída a Giulio Romano, em que Maria aparece a dar banho a Jesus, e dois desenhos da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, um de Leonardo da Vinci e outro de Poliodoro da Caravaggio – no primeiro, uma mulher lava o seu filho; no segundo, a Virgem aparece com o Menino, tendo anjos e almas do purgatório num plano ligeiramente inferior.
A pintura atribuída a Giulio Romano, a única conhecida em Portugal e que não é exposta há mais de 150 anos, pertenceu à colecção Palmela e vai ser objecto de estudos técnicos, para que no fim da exposição se saiba muito mais sobre ela.
Joaquim Caetano, que escreve a nota do catálogo que a ela se refere, diz que poderá ter sido comprada quando o ainda conde de Palmela, Pedro de Sousa Holstein, diplomata e político, viajou pela Europa na qualidade de representante de Portugal na discussão do Tratado de Viena (1815), mas não dá como certa a autoria de Romano.
Seja do discípulo de Rafael ou não, a tábua que pertenceu ao primeiro duque de Palmela mostra bem até onde foram os esforços de humanização da figura da Virgem, aqui ocupada numa tarefa trivial, familiar a milhões de mulheres.
“Maria é a mulher ideal – sempre de grande beleza, tem ao mesmo tempo uma dimensão divina e terrena na própria vivência da fé e, por consequência, na arte”, diz o conservador do museu de Arte Antiga, acrescentando que essa humanização da sua imagem se dá progressivamente, evoluindo com a leitura que a igreja dela faz. Se com Duccio (c.1250/55- 1318/19) é ainda um ícone, à boa maneira da tradição grega, com Giotto (c.1267/1337) é já uma mulher, além da mãe de Jesus.
“Com as ordens mendicantes a imagem torna-se importantíssima porque é usada na prédica e como explicação dos mistérios. Passa a ser um exemplo e faz o caminho que lhe permite tornar-se cada vez mais real, verosímil, credível para que, assim, seja mais eficaz como ferramenta para viver a fé. A Virgem está particularmente ligada a uma vivência diária e individual – rezar a Maria é comum há séculos.”
Vista como a advogada dos homens junto do seu filho, protegendo-os dos castigos divinos, a Virgem Maria tem um lado maternal e consolador que a aproxima dos crentes, que a associam a valores como o amor e a generosidade e que, acrescenta Joaquim Caetano, se deixam comover pelo seu sofrimento.
Vítor Serrão, historiador de arte que dedica particular atenção ao maneirismo e ao barroco, concorda que é com Giotto que a representação de Maria passa a tornar-se menos estática, menos estereotipada e repetitiva, mas vai mais longe ao defender que o papel protector que lhe cabe transcende o próprio cristianismo. “A ambiguidade da figura, no que tem de mulher, mãe e protectora, amplifica-a e dá-lhe, sobretudo a partir do Renascimento, um certo estatuto ecuménico que é novo”, explica este catedrático que é também director do Instituto de História de Arte da Universidade de Lisboa e que no catálogo escreve sobre o Tintoretto. “Com o Renascimento, Maria ganha uma humanidade que não tinha e passa a servir, também, para humanizar Deus. A arte que a representa passa a ser uma espécie de catequese com alma, tangível. A bondade e o carinho que transborda de muitas das pinturas da Virgem são também um convite a um diálogo aberto.”
Os visitantes de Madonna: Tesouros dos Museus do Vaticano terão certamente oportunidade de constatar que a arte cristã tem um valor ético, moral, místico, mas comunica também e de forma poderosa pela via estética. Sendo primeiro produtora de “imagens religiosas que só depois entendemos como arte”, segundo Caetano, o seu objectivo primordial é o de “conquistar almas”, embora possa também ser vista como algo que evolui rapidamente, defende Serrão, “para o campo da maravilha, do inefável, que toca os que compreendem os códigos [da religião] e os que não compreendem”. Seabra Carvalho, o comissário para quem “a Virgem é transformada num cartaz da perfeição”, resume: “Esta é uma exposição para os que acreditam [em Deus] e para os que não acreditam.”